10 de mar. de 2023

'Antes de cair o pano' – Contos de Mário Baggio confirma o autor como uma das vozes mais expressivas da contística brasileira contemporânea


Por Krishnamurti Góes dos Anjos

O jornalista e escritor Mário Baggio até aqui já escreveu 5 livros de contos. A (extra)ordinária vida real (2016), A mãe e o filho da mãe (2017), Espantos para uso diário (2019), Verás que tudo é mentira (2020) e o recém-lançado pela Editora Urutau, Antes de cair o pano. Li e resenhei todos. É notória a evolução do autor que, de livro para livro, demonstra o completo domínio das técnicas narrativas aliado à uma aguda percepção do tempo e circunstância em que vive: que é viver num país como está o nosso atualmente e, ainda por cima, ser escritor...

À propósito da forma e estilo com que o autor escreve a maior parte de suas produções – narrativas muito breves –, chamo a atenção para uma observação que fiz quando do lançamento de seu penúltimo livro “Verás que tudo é mentira”, que é obra publicada em 2020, a respeito do conto curto ou miniconto. Salientei duas verificações. A primeira: Há escritores que parecem encontrar uma fórmula nas histórias curtas que escrevem, assemelhadas, todas elas com o crivo da mesma técnica. Uma marca que os identifica facilmente à primeira vista. Este o mal das fórmulas demasiadamente pessoais que, ao invés de se diversificarem, se apuram até um limite extremo a firmar a impressão de que o escritor está se repetindo. Corre-se o sério risco de cansar o leitor e esgotar-se. Isso pode significar o levantar um muro em torno das obras. Porque restringe-as pela segunda verificação.  

A maior parte das peças ficcionais termina se alinhando aos quadros da novelística de teor urbano. O universo ficcional tende então a se manter restrito, ressoando em circuito fechado. Habitam-no personagens guiados por fatalismos cegos de vida em estado de brutalidade ou minados por legados atávicos, sobretudo em relação ao sexo. São criaturas armadas contra si próprias e contra o seu semelhante. Aqui o cerne da segunda verificação. Os temas, por serem fortes e engrossarem o pesadelo cotidiano, falam por si mesmos. Suficientemente expressivos para que o ficcionista se empenhe em justificá-los literariamente, em explicar-se com todas as letras e todos os verbos. Levar sempre as narrativas a abordagens diretas e francas (que por vezes desce a detalhes grotescos), pode ocasionar a perda da oportunidade de uma maior e melhor composição literária. Lembramos que a criação de “atmosferas ficcionais”, sempre são bem-vindas. O aspecto atroz de certas ficções tende, quando batidos e rebatidos nesta visada, a se impor como verdades filtradas pela ficção. E acaba que encontramos pouquíssimos registros de solidariedade entre aquelas criaturas ficcionais. Vivem suas vidas mesquinhas dando a entender que elegeram o sofrimento e a miséria física e moral, como uma fatalidade. Como se as emoções ou os sentimentos considerados “saudáveis”, não passassem de utopia humana ou fiquem catalogados na categoria de literatura romântica de água com açúcar.

Na época que escrevi isto, chamei a atenção também, para o fato de que: um escritor que deseja permanecer além das modas e das circunstâncias deve ter a inquietação como impulso interior, a descoberta de novas vertentes ficcionais como uma necessidade a que mais cedo ou mais tarde terá de apelar.  E Baggio faz isso com desenvoltura neste Antes de cair o pano. Vai do miniconto, aquele de reduzidas dimensões, como é o caso dos textos “Barulhinho” e “O menino que levita”, as conhecidíssimas chamadas flash fictions, histórias ali na casa das 100/200 palavras, ao conto tradicional de estrutura e enredo mais desenvolvidos como acontece em “Para que a chuva deixe de doer” e “O amante dessa aí”. Citamos esses como textos extremamente bem trabalhados na mensagem que fica para o leitor. 

Se por um lado não há como deixar de lembrar de um Dalton Trevisan ao ler certas ficções de Baggio, por outro, o leitor sentirá resquícios também de um Murilo Rubião (autor de obra importante conquanto reduzida). Este último autor é lembrado aqui, porque foi, senão o pioneiro no Brasil, um dos que primeiro se enveredaram com mestria pela vertente literária de um realismo mágico que se caracteriza, no plano da linguagem, pela constante utilização de símbolos e de metáforas e, no plano temático, pela ocorrência de enredos em que coisas mágicas e mirabolantes acontecem com os personagens. E é precisamente nesta vertente que Mário Baggio consegue a proeza de perseguir verdades que não dependem mais da lógica do acontecimento relatado, e, sim, de uma verdade interior, subjetiva, uma verdade artística plasmada pela personalidade que tanto se deixa influir por fatores extrínsecos, quanto alterna a interpretação da realidade. Dos 40 textos apresentados na obra, seguramente uma quarta parte vai nessa pisada. Um realismo mágico metafísico como bem aponta o escritor Menalton Braff, que assina o prefácio da obra.  

É justamente a contradição e a recusa recíproca entre as ordens do real e do sobrenatural, aliadas à ambiguidade delas decorrente, o que diferencia a categoria do fantástico da do realismo mágico, esta última caracterizada pela compatibilidade entre natural e sobrenatural, entre real e irreal, sem criar tensão ou questionamento. Dessa forma, temos duas categorias literárias distintas, mesmo que aparentadas pela utilização do elemento sobrenatural ou insólito ao lado do real no universo da narrativa. O dito realismo praticado por Baggio em boa parte de seus contos insere-se na tipologia proposta por Willian Spindler. Textos que induzem a um senso de irrealidade pela técnica do estranhamento, por meio do qual uma cena é descrita como se fosse algo novo e desconhecido, sem recorrer explicitamente ao sobrenatural.

Textos como “O homem meio morto”, “Aleijões”, “Caranguejos” e “Comboio” se inserem claramente nessa categorização. São situações insólitas vividas pelos protagonistas. Não existe claramente o sobrenatural; no entanto a sensação de irrealidade, como se estivessem dentro de um pesadelo, instaura-se na narrativa pela impossibilidade de uma definição palpável dos fatos, pelo absurdo mesmo da situação narrada. Há um texto dos mais interessantes na obra. “A extinção dos Bacanegra”. Narra um hábito de muitos anos da numerosa família dos Bocanegra. O de realizar almoços dominicais na casa da velha matriarca viúva. Entretanto, o passar do tempo, e o andar das relações familiares, foi degringolando entre os parentes a tal ponto que terminou transformando-se num verdadeiro inferno tais reuniões. O que dizer, o que pensar de um conto assim, senão a cena viva do que ocorre hoje no país quanto às intolerâncias de toda ordem que grassam a torto e a direito?

À guisa de conclusão, acrescentamos que em seu universo ficcional o autor consegue a ampliação da representação do real, da qual passam a fazer parte elementos considerados peculiares a outras categorias como a do maravilhoso, da fábula, da fantasia – universos paralelos, com leis próprias. As noções que caracterizariam o irreal, incorporam-se à representação do real que não mais se revela mimético, mas sim em sua dimensão total, contendo o que existe na imaginação, no pensamento, no sonho, no devaneio, e que passam a compor a realidade ampliada.       

Sobre o autor, já escrevi um dia: Louve-se o seu poder de fogo. Sua ironia corrosiva, seu sarcasmo demolidor. E tudo, e cada vez mais, com a emoção sugerida e embutida na medida certa. Como não se emocionar com o conteúdo vibrante da difícil condição humana, ao lermos textos como “Um leão na beira da estrada”, “Dona Amábile e o escrevinhador”, “O banho” e ainda o último texto (esse um conto longo), que é inclusive título do próprio livro: “Antes de cair o pano”? A obra merece sem sombra de dúvidas, nosso caloroso aplauso!


Livros podem ser enviados à Revista O Bule para serem resenhados. Caso se interesse, entre em contato: coisasprobule@gmail.com


Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do Rebanho (romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE). Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.