Por Krishnamurti Góes dos Anjos
O jornalista e escritor Mário Baggio até aqui já escreveu 5 livros de contos. A (extra)ordinária vida real (2016), A mãe e o filho da mãe (2017), Espantos para uso diário (2019), Verás que tudo é mentira (2020) e o recém-lançado pela Editora Urutau, Antes de cair o pano. Li e resenhei todos. É notória a evolução do autor que, de livro para livro, demonstra o completo domínio das técnicas narrativas aliado à uma aguda percepção do tempo e circunstância em que vive: que é viver num país como está o nosso atualmente e, ainda por cima, ser escritor...
À propósito da forma e estilo com que o autor
escreve a maior parte de suas produções – narrativas muito breves –, chamo a
atenção para uma observação que fiz quando do lançamento de seu penúltimo livro
“Verás que tudo é mentira”, que é obra publicada em 2020, a respeito do conto
curto ou miniconto. Salientei duas verificações. A primeira: Há escritores que
parecem encontrar uma fórmula nas histórias curtas que escrevem, assemelhadas,
todas elas com o crivo da mesma técnica. Uma marca que os identifica facilmente
à primeira vista. Este o mal das fórmulas demasiadamente pessoais que, ao invés
de se diversificarem, se apuram até um limite extremo a firmar a impressão de
que o escritor está se repetindo. Corre-se o sério risco de cansar o leitor e
esgotar-se. Isso pode significar o levantar um muro em torno das obras. Porque
restringe-as pela segunda verificação.
A maior parte das peças ficcionais termina se
alinhando aos quadros da novelística de teor urbano. O universo ficcional tende
então a se manter restrito, ressoando em circuito fechado. Habitam-no
personagens guiados por fatalismos cegos de vida em estado de brutalidade ou
minados por legados atávicos, sobretudo em relação ao sexo. São criaturas
armadas contra si próprias e contra o seu semelhante. Aqui o cerne da segunda
verificação. Os temas, por serem fortes e engrossarem o pesadelo cotidiano,
falam por si mesmos. Suficientemente expressivos para que o ficcionista se
empenhe em justificá-los literariamente, em explicar-se com todas as letras e
todos os verbos. Levar sempre as narrativas a abordagens diretas e francas (que
por vezes desce a detalhes grotescos), pode ocasionar a perda da oportunidade
de uma maior e melhor composição literária. Lembramos que a criação de
“atmosferas ficcionais”, sempre são bem-vindas. O aspecto atroz de certas
ficções tende, quando batidos e rebatidos nesta visada, a se impor como
verdades filtradas pela ficção. E acaba que encontramos pouquíssimos registros
de solidariedade entre aquelas criaturas ficcionais. Vivem suas vidas
mesquinhas dando a entender que elegeram o sofrimento e a miséria física e
moral, como uma fatalidade. Como se as emoções ou os sentimentos considerados
“saudáveis”, não passassem de utopia humana ou fiquem catalogados na categoria
de literatura romântica de água com açúcar.
Na época que escrevi isto, chamei a atenção também,
para o fato de que: um escritor que deseja permanecer além das modas e das
circunstâncias deve ter a inquietação como impulso interior, a descoberta de
novas vertentes ficcionais como uma necessidade a que mais cedo ou mais tarde
terá de apelar. E Baggio faz isso com desenvoltura neste Antes de cair o
pano. Vai do miniconto, aquele de reduzidas dimensões, como é o caso dos
textos “Barulhinho” e “O menino que levita”, as conhecidíssimas chamadas flash
fictions, histórias ali na casa das 100/200 palavras, ao conto tradicional
de estrutura e enredo mais desenvolvidos como acontece em “Para que a chuva
deixe de doer” e “O amante dessa aí”. Citamos esses como textos extremamente
bem trabalhados na mensagem que fica para o leitor.
Se por um lado não há como deixar de lembrar de um
Dalton Trevisan ao ler certas ficções de Baggio, por outro, o leitor sentirá
resquícios também de um Murilo Rubião (autor de obra importante conquanto reduzida).
Este último autor é lembrado aqui, porque foi, senão o pioneiro no Brasil, um
dos que primeiro se enveredaram com mestria pela vertente literária de um
realismo mágico que se caracteriza, no plano da linguagem, pela constante
utilização de símbolos e de metáforas e, no plano temático, pela ocorrência de
enredos em que coisas mágicas e mirabolantes acontecem com os
personagens. E é precisamente nesta vertente que Mário Baggio consegue a
proeza de perseguir verdades que não dependem mais da lógica do acontecimento
relatado, e, sim, de uma verdade interior, subjetiva, uma verdade artística
plasmada pela personalidade que tanto se deixa influir por fatores extrínsecos,
quanto alterna a interpretação da realidade. Dos 40 textos apresentados na
obra, seguramente uma quarta parte vai nessa pisada. Um realismo mágico
metafísico como bem aponta o escritor Menalton Braff, que assina o prefácio da
obra.
É justamente a contradição e a recusa recíproca
entre as ordens do real e do sobrenatural, aliadas à ambiguidade delas
decorrente, o que diferencia a categoria do fantástico da do realismo mágico,
esta última caracterizada pela compatibilidade entre natural e sobrenatural,
entre real e irreal, sem criar tensão ou questionamento. Dessa forma, temos
duas categorias literárias distintas, mesmo que aparentadas pela utilização do
elemento sobrenatural ou insólito ao lado do real no universo da narrativa. O
dito realismo praticado por Baggio em boa parte de seus contos insere-se na
tipologia proposta por Willian Spindler. Textos que induzem a um senso de
irrealidade pela técnica do estranhamento, por meio do qual uma cena é descrita
como se fosse algo novo e desconhecido, sem recorrer explicitamente ao
sobrenatural.
Textos como “O homem meio morto”, “Aleijões”,
“Caranguejos” e “Comboio” se inserem claramente nessa categorização. São
situações insólitas vividas pelos protagonistas. Não existe claramente o
sobrenatural; no entanto a sensação de irrealidade, como se estivessem dentro
de um pesadelo, instaura-se na narrativa pela impossibilidade de uma definição
palpável dos fatos, pelo absurdo mesmo da situação narrada. Há um texto dos
mais interessantes na obra. “A extinção dos Bacanegra”. Narra um hábito de
muitos anos da numerosa família dos Bocanegra. O de realizar almoços dominicais
na casa da velha matriarca viúva. Entretanto, o passar do tempo, e o andar das
relações familiares, foi degringolando entre os parentes a tal ponto que
terminou transformando-se num verdadeiro inferno tais reuniões. O que dizer, o
que pensar de um conto assim, senão a cena viva do que ocorre hoje no país
quanto às intolerâncias de toda ordem que grassam a torto e a direito?
À guisa de conclusão, acrescentamos que em seu
universo ficcional o autor consegue a ampliação da representação do real, da
qual passam a fazer parte elementos considerados peculiares a outras categorias
como a do maravilhoso, da fábula, da fantasia – universos paralelos, com leis
próprias. As noções que caracterizariam o irreal, incorporam-se à representação
do real que não mais se revela mimético, mas sim em sua dimensão total,
contendo o que existe na imaginação, no pensamento, no sonho, no devaneio, e
que passam a compor a realidade
ampliada.
Sobre o autor, já escrevi um dia: Louve-se o seu poder de fogo. Sua ironia corrosiva, seu sarcasmo demolidor. E tudo, e cada vez mais, com a emoção sugerida e embutida na medida certa. Como não se emocionar com o conteúdo vibrante da difícil condição humana, ao lermos textos como “Um leão na beira da estrada”, “Dona Amábile e o escrevinhador”, “O banho” e ainda o último texto (esse um conto longo), que é inclusive título do próprio livro: “Antes de cair o pano”? A obra merece sem sombra de dúvidas, nosso caloroso aplauso!
Livros podem ser enviados à Revista O Bule para serem resenhados. Caso se interesse, entre em contato: coisasprobule@gmail.com
Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do Rebanho (romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE). Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.