Por Milton Rezende
Um dos rapazes que ali estava tinha sono. Era madrugada de um dia qualquer que nenhum deles se lembra mais. Ali sentados na calçada já não esperavam mais nada de ninguém nem de nada. No entanto o sangue etílico os incitava a fazer algo de inusitado que, diante da impossibilidade de realizarem, se recusavam também a ir para casa.
Aquela cidade parecia inexistir. Nenhuma pessoa na
rua além dos três, que sabiam que naquelas casas havia o pulsar da vida e que
talvez uma nova vida se insinuasse num coito anônimo em andamento.
Nisto chegou um quarto rapaz levado por um quinto.
Cumprimentaram-se em silêncio e dali todos foram embora como que levados por um
pacto sinistro que se faz entre bêbados ou talvez pela própria ausência de
perspectivas.
Naquela noite (o que restava dela) Carlos dormiu
relativamente bem e o sono avançou pela manhã. Quando acordou não tinha perdido
nada. Almoçou como se aquele almoço fosse o primeiro desde a sua chegada, assim
fazendo tinha a impressão de que chegara naquele dia e a noite anterior não
fora perdida.
Cuidou então em preparar o momento a vir. Deitou-se
novamente sem ter sono ou se tinha não soube, pois não dormiu. Deitou-se apenas
porque queria fugir do tempo e do tédio que o ameaçavam de aniquilamento. Mas
cansou-se de tudo e saiu pela chuva, encontrando os dois rapazes da madrugada.
Juntos, eles se exilaram de si mesmos numa mesa de bar reservada por concessão
do proprietário que (conhecedor da mania dos três em se isolarem) queria tê-los
como fregueses. A despesa que faziam era considerável.
A noite chegou e os encontrou ébrios de copos,
músicas que cantaram e conversas muitas. Aproximava-se o momento e Carlos não
teve tempo e nem paciência para tomar banho. Chegando em casa comeu da sopa que
havia e quando foi fritar um ovo se atrapalhou: a sopa derramada na gaveta de
onde fora tirar uma colher era um sinal dele e de sua vida que escorria neutra.
Acabada a refeição, Carlos se dirigiu à rua depois de pegar um livro. Passando
por uma padaria comprou um maço de cigarros e destinou-se a casa dela sem a
certeza de que devia fazê-lo.
-- Ela não está.
-- Obrigado. Volto depois.
Carlos sentou-se numa praça aparentemente deserta
nas imediações para esperar. O livro deixado a um canto do banco. Fazia uma
bela noite e ele pôde verificar a lua e dois velhos que, sentados no banco ao
lado, conversavam qualquer coisa a que não deu atenção. Os olhos presos ao
relógio.
Não havia perdido nada até que duas mulheres (ou
seriam crianças?) da janela, com seus alardes, anunciaram-no e a todos quanto
houvesse, a queda de um homem na rua. Carlos o reconheceu e foi ao seu
encontro, levando-o bêbado ao seu barraco sem luz e esperanças. Deixou-o na
cama que ocupava todo o espaço daquele quarto. Minúsculo barraco para quatro.
Seriam seis, não houvesse a morte de dois filhos por inanição. A mulher do
homem e os dois filhos pequenos que restavam receberam-no sem o menor sinal de
espanto.
-- Isso acontece todos os dias, disse a mulher
resignada. Você sabe como é... já expliquei pra ele, mas de que adianta? Agora há
pouco quando vinha, vi ele e um outro de chapéu de feltro com os copos até aqui
de pinga.
Aquele homem, Zé, era subempregado de um órgão
público. Pagavam a ele o que queriam e o que pagavam não era nada. Mas o Zé não
podia reclamar, pois senão nem isso. Esteve algum tempo em São Paulo como
empregado (quando se conseguia serviço) da construção civil. Mas foi sendo
mandado embora daqui pra lá, de lá pra cá, até que chegou aqui: cidade onde
nascera e que confessava gostar. Afinal tinha sua mulher, seus filhos, aquele
barraco e uma fome permanente. Mas são muitos os Zés espalhados pelo Brasil
que, inevitavelmente, um dia irão se juntar. Não pode estar distante este dia.
A lua cheia, quase explodindo de ódio, era uma prova disso.
Carlos deixou o barraco com aquela tênue luz de uma
lamparina e uma ainda mais tênue esperança de melhores dias. Mas a lamparina
insistente queimava o querosene e o fogo dela há de incendiar os povos para
esta realidade zé-brasileira-mundo.
Ainda naquela hora, Carlos não havia perdido nada
(ou quase nada) de si mesmo. Anterior a tudo seguiu para a casa dela, Mariana.
O livro na mão trêmula e esta num corpo em expectativa. Mas era sempre assim.
No livro uma ligeira, certa impressão de ser ridícula, dedicatória.
-- Ainda não voltou. Deixa recado?
-- Não. Encontro-a por aí. Obrigado.
Não havia perdido nada e ainda era tempo de receber
alguma coisa daquilo que, deliberadamente, ofertara. Mas Carlos não sabia.
Sempre foi bastante ingênuo. Dedicou-se à essência de si mesmo e se esqueceu de
tudo, inclusive da existência. São coisas indissociáveis, mas há uma ordem de
precedência segundo um filósofo e que Carlos desconhecia ou voluntariamente
ignorava.
Encontrou-a num lugar onde não se sentia bem. Mas
tinha que ir até lá. Era onde poderia encontrá-la e ele queria encontrar-se com
ela. Contrariando a intuição de Carlos, bastaram algumas palavras para ele
perceber que já era tarde demais para tudo. Havia um abismo e isto era o que
havia. Disse a ela algumas poucas/bobas palavras de praxe e isso foi tudo o que
disse. Estava acabado.
Carlos desceu a calçada até o bar onde estavam os
dois rapazes. Expôs a eles alguma coisa do ocorrido, bebeu dois copos d’água e,
deixando com eles dois cheques, foi embora. Sentou-se à porta de sua casa sem
coragem para entrar. Se o fizesse, haveria uma série de perguntas para as quais
não tinha respostas. Estava confuso, mas não tardou muito em se recolher.
Deveria viajar na manhã seguinte (se houvesse manhã seguinte, é claro). O
relógio importunava-o com aquele maldito barulho. Pensou em jogá-lo fora, mas
não passou daí.
No quarto, a cama de casal era demais para seu
pequeno corpo, posto que já o sendo, ainda se sentia menos. Nas paredes
desgastadas um quadro de uma santa já um tanto descrente de sua santidade ao
vê-lo. Deteve-se por alguns instantes na foto sorridente do dia do casamento.
Aquilo o reconfortava em parte. Sentiu que nem tudo estava perdido para todos,
na verdade estava acabado.
Pela veneziana entrava um pouco da luz que emanava
de um poste em frente. Fechou as vidraças como se fechasse a si mesmo. O
cinzeiro acusava o quarto cigarro e o relógio assinalava 3 horas da madrugada.
A insônia e o peso de tudo exasperavam-no. E depois aquela dívida que ele
tinha. Amanhã viriam os credores a despeito de tudo. Ignoravam tudo, menos as
dívidas. Mas haveria de arranjar um jeito.
O dente podre e a cabeça oca lhe doíam. Tomou um
analgésico e um copo de erva-doce. Isto acalma e dá sono, disse-lhe a mãe,
preocupada com os fatos evidentes da desgraça do filho, mesmo sem conhecer as
verdadeiras causas que determinavam isto ou aquilo. Diabos, mas ele também não
falava, não se abria. Estava arruinado e todos sabiam disso, mas não havia como
ajudar.
Voltou para a cama e acendeu outro cigarro. O dia
amanhecia e nada de sono. O dia amanhecera de todo.
Desistiu da viagem. Trabalhar não pôde. Esqueceu-se
de tudo e pegando uma caneta escreveu no papel higiênico: “Se algum dia eu me
arrepender de alguma coisa, não vou culpar a mim mesmo e nem aos outros. Não
vou culpar ninguém. Vou apenas justificar-me perante as diferenças
individuais”.
Leu e releu o escrito. O pensamento não era de todo
ruim, mas ficou em dúvida quanto ao caráter genérico ou específico do mesmo.
Usou o papel para o fim que lhe é destinado, puxou a descarga e desfalcado de
si mesmo foi almoçar.
Do livro Textos e Ensaios
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália
(MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG),
onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha
(MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP).
Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados.
Tem um site e um blog.
Fortuna crítica: “Tempo de Poesia: Intertextualidade, heteronímia e inventário poético em Milton Rezende”, de Maria José Rezende Campos (Penalux, 2015).