12 de jan. de 2023

Para que afinal se faça luz!

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

Em outubro de 2016, recebi da Editora Penalux um livro de contos sob o título de As horas. Seu autor, Alex Andrade. À determinada altura escrevi que a tônica dos textos ali reunidos “se assenta no tempo psicológico das personagens, o que traz ao tempo presente das narrativas não só uma série de fatos vividos, mas também as marcas emocionais desses fatos que foram armazenados e que vêm à tona independentemente do distanciamento e do tempo transcorrido, pois fazem parte do ser no tempo presente.” Pareceu-me, então, que seu autor recriava “nos textos a experiência humana e nos disponibiliza interioridades a partir de um movimento de autorreflexão questionador e muitas vezes contraditório, onde reflete-se o sentido da vida e da situação em que nos encontramos.”

Pareceu-me também que em outros textos, “a condução da narrativa se constitui ora por fatos que emergiram da memória, ora por fatos presentes, sem diferenciação clara de planos temporais, já que as lembranças surgem e sofrem continuamente a interferência do tempo presente e de todas as vivências que ele implica (simultaneidade entre tempo psicológico e cronológico). A rememoração de fatos passados, muitas vezes súbita e não explicitada, dá às personagens a característica humana da recordação em que à memória se confia o sentido e o rumo (às vezes) de nossas vidas.” 

Dois anos depois, em agosto de 2018, já não sei mais em que circunstâncias, me chegou às mãos um romance excepcionalmente bem escrito sob o título de Antes que deus me esqueça. Alex Andrade o autor, novamente. Relendo o texto que concebi então, encontro duas observações que fiz sobre a obra. Primeira: “a sensibilidade e habilidade do autor vai nos deixando entrever como se forja no espírito do protagonista, sua percepção do mundo, seus sentimentos e dores, que  impõe-lhe uma sociedade que fundamentalmente rejeita a priori o ser humano a partir de racismos, preconceitos religiosos (estes cada vez mais estapafúrdios),  etc. Mágoas e violações dos sonhos mais elementares de uma criança. E é assim, debaixo dessas condições tão adversas para sua personalidade - entendida como unidade integrativa de uma pessoa, o conjunto das suas características essenciais (inteligência, caráter, temperamento, constituição), que o protagonista cresce. Nesse ambiente hostil, que seu caráter, - maneira habitual e constante de reagir, própria de cada indivíduo, gênio; firmeza; força de ânimo -, se molda.” Segunda observação: “De que somos feitos? Em que parte da vida percebemos a real importância de existirmos? Outro mérito incontestável da obra. O sinalizar para uma conscientização de que o homem não foi feito para a derrota. Um homem pode ser destruído. Não derrotado. 

2022. O homem não sossega. Alex Andrade mais uma vez surpreende cada vez com maior impacto. Temos em mãos seu novo romance: Para os que ficam. Passamos a palavra à escritora Paula Fábrio, que assina o texto da orelha, e nos informa o enredo muito suscintamente: “Neste vertiginoso drama familiar, Alex Andrade escancara o abuso das relações domésticas no Brasil: álcool, assédio, violência. E vai além: expõe uma narradora que não se percebe machista e alimenta sua própria derrocada com extrema crueza e distorções febris. Para os que ficam conta a história de Ana, uma filha a cuidar de um pai doente (ou seria o inverso?), e seu louco diálogo com as vozes do passado: o irmão canalha e impenetrável, a mãe omissa, o marido desvairado. E ela, quem é Ana? Por tudo isso, é preciso dizer: o leitor não encontrará paz nas páginas deste romance, pelo contrário, irá se defrontar com uma estrutura social desajustada e complexa, cujo reflexo surge com maestria na estrutura do texto. Enfim, um livro labiríntico e poético como a vida e a nossa eterna incapacidade de conjugar família e liberdade.” 

Com efeito, acrescentamos ainda, e à propósito do que afirmamos neste parágrafo sobre o autor: “O homem não sossega”. Ótimo que assim seja. Essa a obrigação do autêntico escritor. Um escritor que se preze terá sempre e incansavelmente que retomar, reabrir e redimensionar temas, segundo sua visão de mundo. Indagações, perplexidades e desesperos humanos estão sempre a convocar e atualizar os temas básicos da existência. Mais importante que o tema a ser desenvolvido, será a maneira de exprimi-lo.  Seguramente um ficcionista que se preza há de ter o que dizer, e precisa fazê-lo, do contrário se frustra e nos frustra. O senhor Andrade sabe perfeitamente como dizer, aliando a isto uma visão de mundo original. É o que confere a Para os que ficam, e em instância final, foros de legitimidade e originalidade. 

Para os que ficam é romance de formação focado na família, esta instituição em constante evolução, atualmente em franca ebulição, e sob um olhar feminino. Quanto ao feminino assumido pelo autor, não constitui novidade. Basta lembrarmos algumas inesquecíveis mulheres de seu livro de contos As horas, como são aquela do conto “A chuva” ou a adorável velhinha do conto “Tá vendo o dia lá fora?”. A Ana que surge a nossos olhos nos lembra muito aquele famoso dito de William Faulkner (1897-1962), “o que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo no campo no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao redor.” Andrade ilumina mais ainda a questão quando de um diálogo telefônico entre a protagonista Ana e seu irmão Luciano: 

“Então, cuidadosamente, explicou: “vaga-lumes com sua luz efêmera. Mas que mostram como, apesar de tudo, apesar do obscurantismo que procura deixar tudo sem luz, esses insetos iluminam o mundo para que possamos ver melhor. São eles o princípio de esperança iluminada para o nosso olhar tão sem luz” (...) “Lu me contava essas histórias para sublimar os acontecimentos, desde que tomou a coragem de assumir quem era e seguir seu caminho no mundo, nunca mais deixou que apagassem a sua luz. Aquele menino retraído, distraído e que se escondia atrás da minha proteção, tornou-se um ser iluminado, resplandecente. ‘Um dia a luz se apaga’, dizia, ‘e pode ser que o brilho esteja em outro canto, com outra forma, quando se ouve as histórias que relatam a vida humana e a natureza que há nela, não há por que contestar’ (pp. 103-104).

Positivamente o senhor Alex Andrade, a cada nova obra, confirma e amplia sua posição inequívoca: a de ser uma das vozes mais expressivas da literatura brasileira contemporânea.


Livros podem ser enviados à Revista O Bule para serem resenhados. Caso se interesse, entre em contato: coisasprobule@gmail.com


Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado (contos), À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro, O Touro do Rebanho (romance histórico), obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar, do Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE). Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.