19 de jan. de 2023

Antes de eu morrer

Por Milton Rezende
 
Colibri
 
o beija-flor sobrevoa
ao redor do alimento
com idas e vindas
como quem hesita
e num passo de dança
avalia a investida
com a flecha do bico
e a língua de fora.
 
num instante repousa
sobre o varal estendido
a meio-pau como se fosse
um estandarte do improvável
de ele estar ali no cimento.
 
no céu azulado de fim de tarde
andorinhas ziguezagueiam
em rotas de colisão e sensores
afiados como uma lâmina
sobre a parafina que dissolve.
 
eu na cadeira de rodas alugada
olho a destreza de cor e plumagem
no desenho das nuvens que se
transformam em logomarcas de água.

a mulher sobre o banco de madeira
acompanha extasiada o balé flutuante
de diminuta envergadura como pluma
a estabelece a ordem e o caos no asfalto
cintilante que poreja.
 
 
Medo de...de/decair
 
Antes de eu morrer
não coloquem máquinas
em mim.
 
Deixem-me ir escorregando
pela noite sem fim rumo
a uma casa sem dor.
 
Deixem a porta aberta
defronte ao jardim já sem flores.
 
Por favor não me prendam
debaixo de uma máscara de elástico
e nem tubos de oxigênio.
 
Quero só fim e nada além
sem a luz falsa e ilusória
das lâmpadas de led dos aparelhos.
 
Numa casa sem dor
eu poderei deixar de ser
um andarilho descalço.
 
 
Prova
 
a equação da vida
não bate nunca
porque sempre haverá
no mínimo dois
lados para olhar,
dois modos de contemplar
e duas perspectivas
a anularem-se.
 
Poemas da obra Um Andarilho Dentro de Casa.  
  

Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Está em www.miltoncarlosrezende.com.br e www.estantedopoetaedoescritor.blogspot.com.br