5 de jan. de 2023

A propósito de ‘o privilégio dos mortos’, de Whisner Fraga

 

Por Milton Rezende 

O filme “Bonitinha, mas ordinária”, um clássico do cinema nacional, com bela atuação do saudoso José Wilker e inspirado na célebre peça de Nelson Rodrigues, tinha um bordão (ideia-fixa do filme), repetido diversas vezes pelo personagem Edgard: “O mineiro só é solidário no câncer”, frase atribuída a Otto Lara Resende. 

Esta frase tornou-se icônica, mas não é bem verdade. Entretanto dita pelo ator José Wilker com tanta e especial ênfase que eu me recordo até hoje, donde se depreende que a ênfase é tudo. O próprio Drummond tem um verso neste sentido ao dizer “as coisas/que triste são as coisas consideradas sem ênfase” (“A Flor e a Náusea”). 

Então, para todos os efeitos, tornou-se realmente verdade que o mineiro só é solidário no câncer. Por extensão, poderíamos dizer, alargando o seu horizonte e seu alcance, que “O brasileiro só é solidário no câncer”. Aliás, eu acho que é assim que se encontra no filme, não tenho bem certeza. 

No romance de Whisner Fraga “o privilégio dos mortos”, publicado pela Editora Patuá no ano de 2019, tem muito disso, pois trata-se de um romance composto, todo ele, de frases poéticas, algumas de efeito. Poder-se-ia dizer, exagerando um pouco, já que o livro é extenso com 250 páginas, que é um longo poema em prosa. Mas não. São frases poéticas mesmo, soltas, avulsas, lapidares, como pássaros esvoaçantes, em todo o corpo do livro. Você pode ir pinçando aqui e acolá a seu bel prazer, estas frases, helena. 

O narrador, de passagem por Tejuco, sua cidade natal, retornando a ela diz: “fui até a rua seis e, a poucos passos do portão verde da casa em que meu amigo morou, ainda estava em dúvida se devia  gritar por ele ou não”. E foi assim que o personagem-narrador “começou a questionar a sua morte”, a morte do seu amigo heitor. E para ele, o narrador, “o processo só se completa quando eu contemplo o cadáver, quando atesto, que a pessoa abandonou, de fato, esse mundo”, “e eu não queria enlouquecer, pois os loucos sofrem demais, helena.

Mais adiante o narrador segue introjetando a perda do amigo à sombra de sua cidade natal Tejuco. 

“e na noite anterior, helena, eu vinha cansado de outros juízos e não consegui, por um momento, acatar as pistas da lógica e depois, depois, helena, convivia com essa excentricidade: eu precisava ver o corpo, eu precisava tocar o frio, a ausência, a rigidez, para me certificar do fim e foi isso que se deu, certamente foi isso, porque eu havia deixado Tejuco e presenciei a morte de meu amigo, apenas naquela folha a-quatro descorada, que anunciava a missa de sétimo dia”. 

“o pânico é uma necessidade de deserção”. 

O narrador do livro, num paroxismo de álcool e de delírio, desenterra o seu amigo heitor. Este romance é feito, todo ele, assim: não há um enredo definido e obedece ao fluxo de consciência do narrador/autor.

Outro recurso utilizado, além de ser escrito totalmente em letras minúsculas, até para nomes próprios, é a inserção da “personagem” helena, sempre citada ao longo do livro, dando a ele uma coloquialidade e uma fluidez tremenda. Verdadeiramente um achado literário, não é mesmo, helena? 

É quando afinal, e ao final do livro, a turma chega ao cemitério de Tejuco para celebrar a morte do amigo heitor. E eles são alguns e a turma entre excitada e embriagada, pois embriaguez e sensualidade é o que de melhor define a morte, desde os filmes do Nosferatu, de Marnau, com excepcional interpretação de Max Schreck,  quando ele sobe as escadas do imponderável e do inevitável. E então esta turma suborna o coveiro com uma garrafa de cachaça e vão todos celebrar a Morte, a morte do amigo heitor, e numa “evasão” erótica de corpos despindo de suas vestes e dançando sobre as tumbas que nem observam quando o narrador do romance se distancia uns quinze metros rumo ao túmulo do seu amigo heitor e o desenterra e abrindo o  caixão abraça o cadáver do amigo “vendo e sentindo o corpo do seu amigo inchado, seu amigo incompleto, seu amigo carcomido, seu amigo escurecido e sente vontade de abraçá-lo, de  beijá-lo como fazem aqueles que se despedem e o puxa para perto, sentindo tudo que eventualmente fora pele, que fora carne, que fora músculo, que fora união, cola nele e, mesmo enojado, avança seus lábios e aproxima a cabeça do seu peito e sente medo de que tudo desmorone, tem medo que algo que já tenha sido ele, heitor, esteja por perto e não goste daquele carinho, de forma que tenta não amarrotar o terno cinza...” E se despede do seu amigo indagando: “o experimento de deus tem prazo de validade?”


“a proximidade da morte fortalece minha fé,
o que me resta senão isso?
resta-lhe o mundo.
e a esperança?
a esperança não.”


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