22 de dez. de 2022

Quando acordei do coma parece que entrei num pesadelo

Por Milton Rezende

Acrobata 

um pessegueiro roxo
braços em formas de garras
dedos intumescidos
pernas retesadas.
 
quando estamos dormindo
tudo parece fácil:
pé fora da cama
e acrobacia de quedas. 
 

Balada do homem invisível 

tenho 57 anos
e estou ficando
invisível.
 
estar invisível
é ir-se apagando
aos olhos dos outros.
 
ser uma memória
antiga que ninguém
se lembra mais.
 
viver num quarto
menor e anexo
ao quintal vazio.
 
as pessoas jovens
o sinaleiro verde
e sua janela fechada.
 
no meio da conversa
dizer algo singelo
que ninguém percebe.
 
não ser convidado
para nada porque
o seu lugar não existe.

tenho 57 anos
e estou ficando
invisível.
 
talvez fosse cedo
mas tive um derrame
e deixei derramar
a caneca de café. 

 
Quando acordei do coma parece que entrei num pesadelo 

quando acordei do coma
eu já não tinha mais
a mobilidade de antes.
olhei para as paredes
de vidro do isolamento
e já não tinha a mesma visão
de antes
a mesma audição
de antes.
 
o mundo parecia ser outro.
 
perna e braço direito
estavam paralisados,
dormentes e um sono
de letargia na noite
fria com pedras de gelo
no peito, do lado
esquerdo, assim penso.
 
o mundo já não era o mesmo.
 
dois dedos do pé esquerdo
haviam sido afetados
e minhas afeições e
percepções já não eram
as mesmas. fúria de
não ter sido antes.
 
minha intimidade
e meus defeitos haviam
sido atingidos como
escaras do tempo.
 
nunca mais quis tirar fotografias.
 
havia um corpo estranho
no meu corpo fragilizado
e uma tela no estômago
de baixo para cima eu havia
sido atingido por um golpe
do destino e várias cirurgias.
 
não tinha mais condições
suficientes para poder
trabalhar, sobreviver
e tive que depender
de apoio, de cestas básicas
da vida como um doente
a quem falta alguma coragem.
 
remédios para a goela grande das farmácias.
 
acordei como quem entra no pesadelo
e já não podia sonhar acordado ou dentro
de uma noite normal e previsível.
o eixo de tudo continuava gasto

como o eixo do mundo, ANTES.


Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Está em www.miltoncarlosrezende.com.br e www.estantedopoetaedoescritor.blogspot.com.br