braços em formas de garras
dedos intumescidos
pernas retesadas.
quando estamos dormindo
tudo parece fácil:
pé fora da cama
e acrobacia de quedas.
Balada do homem invisível
e estou ficando
invisível.
estar invisível
é ir-se apagando
aos olhos dos outros.
ser uma memória
antiga que ninguém
se lembra mais.
viver num quarto
menor e anexo
ao quintal vazio.
as pessoas jovens
o sinaleiro verde
e sua janela fechada.
no meio da conversa
dizer algo singelo
que ninguém percebe.
não ser convidado
para nada porque
o seu lugar não existe.
e estou ficando
invisível.
talvez fosse cedo
mas tive um derrame
e deixei derramar
a caneca de café.
Quando acordei do coma parece que entrei num pesadelo
eu já não tinha mais
a mobilidade de antes.
olhei para as paredes
de vidro do isolamento
e já não tinha a mesma visão
de antes
a mesma audição
de antes.
o mundo parecia ser outro.
perna e braço direito
estavam paralisados,
dormentes e um sono
de letargia na noite
fria com pedras de gelo
no peito, do lado
esquerdo, assim penso.
o mundo já não era o mesmo.
dois dedos do pé esquerdo
haviam sido afetados
e minhas afeições e
percepções já não eram
as mesmas. fúria de
não ter sido antes.
minha intimidade
e meus defeitos haviam
sido atingidos como
escaras do tempo.
nunca mais quis tirar fotografias.
havia um corpo estranho
no meu corpo fragilizado
e uma tela no estômago
de baixo para cima eu havia
sido atingido por um golpe
do destino e várias cirurgias.
não tinha mais condições
suficientes para poder
trabalhar, sobreviver
e tive que depender
de apoio, de cestas básicas
da vida como um doente
a quem falta alguma coragem.
remédios para a goela grande das farmácias.
acordei como quem entra no pesadelo
e já não podia sonhar acordado ou dentro
de uma noite normal e previsível.
o eixo de tudo continuava gasto
como o eixo do mundo, ANTES.
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em
Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de
Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em
Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas
(SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros
publicados. Está em www.miltoncarlosrezende.com.br e www.estantedopoetaedoescritor.blogspot.com.br