Por Carla Dias
Funcionário
dedicado a resolver questões que seus irmãos e primos nem sequer chegam a
encarar. Eles trabalham nos escritórios enfileirados do 34º andar, sentados em
cadeiras ergonômicas, amarrotando seus ternos italianos ao cruzar de pernas e fumando
cigarros importados. Não que a vida deles seja fácil. Há dias em que seus olhos
parecem querer saltar das órbitas, que disfarçar o suor vertido pelo nervoso é
quase impossível, mas necessário, porque os clientes não devem detectá-lo, já
que podem desejar quebrar contratos por falta de decoro higiênico.
Suar faz mal para os negócios.
Trabalha em um anexo colado à garagem do prédio. Entra, fecha a porta e sai de lá doze horas depois. Leva o almoço de casa, tem seu próprio banheiro, não precisa sair do lugar para executar suas tarefas. Se precisa de algo, um funcionário resolve para ele tudo o que for externo. Fora o funcionário, recebe ninguém em seu aposento comercial.
Não sente como se o trabalho lhe roubasse as melhores horas do dia. É à noite que seu espírito rebenta, quando chega em casa, toma um banho e escuta jazz durante o jantar. Engole o contentamento de mais um dia de trabalho concluído de maneira satisfatória com a comida entregue pelo seu restaurante preferido.
Seus irmãos e primos são pessoas honestas. Talvez por isso vivam a disfarçar seus suores esguichados do nervosismo de quem não sabe o que fazer para dar certo. Porque o avô ensinou aos seus que tudo daria certo, e assim tem sido, desde a inauguração da empresa da família.
Tudo dá certo, mesmo quando dar certo não é possível.
É no departamento do impossível que ele trabalha. Gosta da solidão dos que fazem acontecer, de quem mantém as pagas das promessas em dia, não apenas as das promissórias. Aprecia a liberdade vinculada ao seu cargo. No canto da garagem, naquele anexo que chamam de depósito, ele desempenha sua função com o talento reconhecido pelos poucos que, feito ele, trabalham sem a necessidade de reconhecimento.
Senta-se defronte a ele, observando as nuances da sua existência. Então, abre o seu kit de instrumentos de trabalho. O homem permanece calado, pois não há outra opção, mas seu corpo se agita ao olhar para aquelas lâminas.
O avô esclareceu que a empresa era apenas um meio para um fim. Demorou até que o pai lhe apresentasse ao fim, às consequências de um trabalho bem-feito. Seus irmãos e primos não entenderam a mensagem, não escutaram o que foi dito, mas ele, sim.
As paredes não permitem o escapulir de sons. O avô foi um talentoso engenheiro acústico e o neto lamenta não poder incluir o anexo em seu currículo. O pai garantiu que os segredos são necessários em projetos tão importantes como o deles.
Mas hoje o resultado se mantém. Mais um corpo estirado no chão do escritório e zero informação.
Chama o funcionário para a retirada do corpo. Faz anotações, analisa dados e aposta que a próxima será a pessoa certa. Aquela que suportará a dor, sobreviverá a ela e dirá as palavras aguardadas. Seus irmãos e primos não fazem ideia do seu valor. Que a ele será entregue a mensagem de salvação da humanidade.
A ideia de se tornar o salvador da humanidade lhe agrada.
Ao se
deitar, já no bojo da madrugada, confere
mentalmente o que foi concluído durante o dia. Relembra detalhes, os que mais o
marcaram. Revisita prazeres inusitados, aqueles que o fizeram estremecer de
prazer. Os olhos fixos no teto parecem tela para reprise de filme antigo.
Carla
Dias é
paulista de Santo André. Escritora, baterista e produtora cultural, autora dos
livros Os estranhos (romance – sic, 2009), Estopim (2012), O observador (contos – Penalux,
2016), Livro das confissões (poesia – Patuá, 2018), Baseado
em palavras não ditas (romance – Edição do Autor, 2019), entre outros. É
cronista do Crônica do Dia desde 1998, ano de lançamento. Baterista da banda
OsQuatro, vem trabalhando um repertório autoral com algumas canções/poemas de
sua autoria musicados por amigos músicos.