Por Carla Dias
A minha existência se parece com a dos produtos expostos em prateleiras de lojas de departamento. As pessoas gostam de passear por aqueles corredores, simulando aquisições que não têm como bancar. Entre um toque de vergonha, por terem de aceitar que são menos, e de indecência, por desejarem valer mais, elas encontram no lar-mostruário – escancarados em beleza comprometida por um dano, um risco, uma deformidade que os desqualifica à categoria de perfeição – a realização.
Sabe quantas vezes desfilei nesta vitrine, a boca cheia de verbos que era impedido de colocar em ação? O espírito desiludido? Acredite, eu tenho um ao qual chamo essência, uma fogueira interior que, de quando em quando, apaga-se, deixando-me a sós com a escuridão.
Como você está agora.
Percebe o cativeiro no qual me mantém? O território da sua imaginação congestionada por distrações?
Sou o filho do qual você jamais conseguirá se livrar.
Para não esquecer o papel que me cabe nessa trama, entregarei a você o meu rótulo, aquele que adotei com orgulho, que resume minha participação nesse universo que compartilhamos. E você o escutará como se fosse um arrepio, um desarranjo emocional, um querer estrangeiro, do qual não reconhecerá origem.
Posso ajudá-lo com seus lamentos e não terei pudores em fazê-lo mergulhar em cada um deles, e com tal profundidade, que haverá vezes em que lhe faltará o ar e você desejará que a morte venha buscá-lo com urgência. Ela não chegará. A falta de ar se somará a um desespero de quem se perdeu no nada.
E o nada é uma encruzilhada.
Ele tem o poder assustador de imputar escolhas aos que não acreditam na existência delas. As pessoas pensam que ele é pacificador, um encantador de silêncios benvindos ou aniquilador dos indesejados, capaz de ocupar o que falta e aquietar o que fere. Talvez esterilizar a ausência de algo ou alguém. O nada é um recinto abarrotado de verbos que ficam ecoando no dentro, questionando o ser que habita que, se o mundo gira, quem ele pensa que é para ficar parado e oco?
O nada pretende se transformar em tudo. Este é o seu grande plano. E ao ser reduzido à infelicidade, mostra-se cruel e paralisante.
Não vou mentir: me faz feliz vê-lo se arrastar até o banheiro, para o banho mais demorado que já tomou. O choro que se desata do aprisionamento do seu sentimento ecoa alto, descompassado, catártico. Aprecio vê-lo voltar para a sala, a roupa trocada, limpa, os cabelos ajeitados, o perfume de sabonete se misturando ao de café fresco. Que ajeite seus objetos – de escritor decidido a contar história – sobre a escrivaninha, que sente saudade do seu debruçar-se sobre ela. Que narre ficções encharcadas de verdades, daquilo que jamais confidenciará a outro ser humano, somente a mim.
Uma imensidão de diferenças se coloca entre nós. Não sou você, apesar de nascer de você. Entende o que deve ser feito? As conexões que precisa estabelecer? Os verbos que têm de corroborar com feitos e desfechos?
Não abrandarei o seu aprendizado adquirido. Não estou aqui para ser o remédio, a recompensa, o alívio. Entre seu respirar fundo e o curvar-se sobre o papel em branco, eu aprendi você a ponto de levá-lo aonde você jamais iria por conta própria.
Eu sou criatura, personagem. Entregue a mim, isento de medo ou ressalvas, monólogos despidos de censura. Desacorrente a liberdade.
Continuamos juntos, conectados por um susto, obrigados a compartilhar um momento, devido a um atrevimento sem autoria assumida. E vou chamar essa dinâmica – fatos e fugas, devaneios e mergulhos – de obra do universo.
E que os
verbos digam amém.