28 de fev. de 2022

O Brasil, os Brasis, 1900, 2021

Por André Giusti

 

Os Brasis de Brasília

 

Alguém me dá uma ajuda

Pra mim comprar uma cesta básica?”,

grita lá embaixo o Brasil

com fome na tarde de sábado

entre os vãos dos prédios

com vidro fumê espelhado

mármore e granito

de Brasília

(a capital de todos os brasileiros,

Dependendo, é claro, de quem

São esses brasileiros).

Lá em cima, nos quatro quartos com suítes,

nas coberturas com área privativa,

o Brasil com salário em dia não ouve:

cochila no sofá depois do almoço,

vendo seriado na Netflix.


 

Brasil, 2021

 

Maria Fidélis já teve alguma dignidade

Não era a ideal,

Mas dava para andar de cabeça erguida,

para manter os olhos acima do chão.

 

Ela vendia paçoca no sinal

E pagava por um quarto escuro mofado fedido

Onde morava de aluguel.

 

Mas tudo que nunca foi muito bom

Piorou muito mais

Do que o pior que Maria Fidélis poderia esperar.

 

Maria Fidélis não tem mais paçoca

Nem quarto

Nem cabeça erguida

Nem olhar pra cima do chão.

 

Maria Fidélis pega osso no lixo

Pra fazer sopa na invasão

Cata miolo de pão

Cata jornal

Pras épocas de menstruação.

 

Ainda passa pelo sinal,

Mas só levanta a cabeça

quando ele Fecha

e sem dignidade sem força

estende o braço

em direção ao motorista da SUV importada

que sobe rápido o vidro

para não perder a notícia

sobre o ministro que

guarda dinheiro

no paraíso fiscal.


 

Paralelos

 

A menina só de calcinha

nina a boneca de plástico

sem cabeça

que achou mês passado no lixo.

Ela, mãe e irmãos comeram hoje:

os pessoal dos crente

apareceu com panelão de sopa”.

Amanhã ninguém sabe

Esta semana talvez de novo.

Ali perto

a Polícia invadiu para manter a paz.

12 mortos todos pobres todos pretos.

Enquanto isso,

o poeta ‘nem te ligo’

permanece na escuridão do seu umbigo

escrevendo sobre sua poesia e seu vazio.

Ele acha mesmo

que o mundo não pode passar sem saber

quão dolorido é

seu processo de criação.

 

André Giusti nasceu em maio de 1968 na cidade do Rio de Janeiro e mora em Brasília desde o final dos anos 1990. Tem nove livros publicados entre contos, crônicas e poemas. O mais recente é a coletânea de poemas De Tanto Bater com o Osso, a Dor Vira Anestesia, pela Editora Penalux. Espera lançar este ano seu primeiro romance, Só Vale a Pena se Houver Encanto.