Por André Giusti
Os Brasis
de Brasília
“Alguém me dá uma
ajuda
Pra mim
comprar uma cesta básica?”,
grita lá embaixo o
Brasil
com fome na tarde de
sábado
entre os vãos dos
prédios
com vidro fumê
espelhado
mármore e granito
de Brasília
(a capital de todos os
brasileiros,
Dependendo, é claro, de
quem
São esses brasileiros).
Lá em cima, nos quatro
quartos com suítes,
nas coberturas com área
privativa,
o Brasil com salário em
dia não ouve:
cochila no sofá depois
do almoço,
vendo seriado na Netflix.
Brasil,
2021
Maria Fidélis já teve
alguma dignidade
Não era a ideal,
Mas dava para andar de
cabeça erguida,
para manter os olhos
acima do chão.
Ela vendia paçoca no
sinal
E pagava por um quarto
escuro mofado fedido
Onde morava de aluguel.
Mas tudo que nunca foi
muito bom
Piorou muito mais
Do que o pior que Maria
Fidélis poderia esperar.
Maria Fidélis não tem
mais paçoca
Nem quarto
Nem cabeça erguida
Nem olhar pra cima do
chão.
Maria Fidélis pega osso
no lixo
Pra fazer sopa na
invasão
Cata miolo de pão
Cata jornal
Pras épocas de
menstruação.
Ainda passa pelo sinal,
Mas só levanta a cabeça
quando ele Fecha
e sem dignidade sem
força
estende o braço
em direção ao motorista
da SUV importada
que sobe rápido o vidro
para não perder a
notícia
sobre o ministro que
guarda dinheiro
no paraíso fiscal.
Paralelos
A menina só de calcinha
nina a boneca de
plástico
sem cabeça
que achou mês passado
no lixo.
Ela, mãe e irmãos
comeram hoje:
“os pessoal dos
crente
apareceu
com panelão de sopa”.
Amanhã ninguém sabe
Esta semana talvez de
novo.
Ali perto
a Polícia invadiu para
manter a paz.
12 mortos todos pobres
todos pretos.
Enquanto isso,
o poeta ‘nem te ligo’
permanece na escuridão
do seu umbigo
escrevendo sobre sua
poesia e seu vazio.
Ele acha mesmo
que o mundo não pode
passar sem saber
quão dolorido é
seu processo de criação.
André
Giusti
nasceu em maio de 1968 na cidade do Rio de Janeiro e mora em Brasília desde o
final dos anos 1990. Tem nove livros publicados entre contos, crônicas e
poemas. O mais recente é a coletânea de poemas De Tanto Bater com o Osso, a
Dor Vira Anestesia, pela Editora Penalux. Espera lançar este ano seu
primeiro romance, Só Vale a Pena se Houver Encanto.