22 de mar. de 2022

Contos reversos

Por Glênio Cabral 

O escritor tinha o hábito de mudar o sentido de histórias conhecidas, alterando seus finais e trocando os personagens de lugar e de conduta. Um dia, resolveu escrever um livro de contos. Começou compondo uma história intitulada "O porco mal e os três lobinhos". No conto, um suíno sinistro saído dos piores pesadelos lovecraftianos arrastava três filhotes de lobo para seu chiqueiro fétido, atacando-os sem piedade a noite inteira, devorando-os, lentamente, de forma prazerosa. 

No conto seguinte, uma criança sensível, inconformada com as injustiças do mundo, procurava um feiticeiro para se transformar num brinquedo, abandonando assim sua natureza humana, numa espécie de protesto existencial. O escritor lhe pôs o título de "Pinóquio e o caminho de volta". 

No terceiro conto, uma formiga, depois de ter sido expulsa de sua colônia por ter se comportado de forma contrária ao que o instinto animal deveria lhe impor, começou a se transformar num ser humano. Enquanto mãos e pernas eclodiam do corpo do inseto, desintegrando suas antenas, seus pelos, suas patas, todo o formigueiro era destruído de dentro pra fora. 

Recebeu o título de "O reverso de Kafka". 

E assim, histórias foram compostas, personagens trocados de posição e autores violentados. 

Mas então chegou o momento de escrever o último conto do livro. Haveria de ser algo medonho, completo, um ponto final convincente para histórias de traz pra frente. Com um brilho estranho nos olhos, o escritor escreveu sobre a vida de um ficcionista que mudava o sentido de histórias conhecidas, assim como ele estava fazendo. 

Enquanto concluía a história, começou a sentir que suas ações já não eram mais ditadas por ele. A sensação era a de que alguém ou alguma coisa impulsionava a sua escrita, direcionando palavras, enredo e história. 

Sem poder mais parar de escrever, o escritor finalizou o último conto com o escritor da sua história entregando-se aos abismos da loucura. 

Quando tentou colocar o ponto final na história, o seu personagem, o escritor fictício, foi quem o fez. E ele percebeu que da mesma forma que invertera enredos e personagens nos contos anteriores, agora ele tornara-se a ficção, e sua criação, o então escritor fictício, não era mais um personagem, mas a vida real.

Papéis invertidos, portanto. 

E como havia determinado ao seu personagem, agora ele enlouquecera.


Glênio Cabral é graduado em administração de empresas e pós-graduado em gestão de pessoas. Como escritor, possui um projeto literário a ser lançando em breve, intitulado Com a palavra, a anta: uma abordagem bem-humorada sobre a prática da empatia. Também é autor da coletânea de crônicas Gramática de Vida, publicada nesta revista digital. A literatura é uma tábua na qual se agarra dia após dia, na esperança de não ser tragado pelas ondas da realidade. Também comete algumas ilustrações em @gleniocabralilustrador.