16 de fev. de 2022

‘o que devíamos ter feito’ – à espera de um leitor corajoso

Por Sinvaldo Júnior 

O livro o que devíamos ter feito, de Whisner Fraga, começa muitíssimo bem, e não estou falando da primeira das quatorze narrativas, mas sim da capa (tanto do desenho de Leonardo Mathias quanto da escolha das cores aparentemente contrastantes), do projeto gráfico e, sobretudo, do prefácio escrito por Ronaldo Cagiano, “A autópsia de nossa desilusão”: 

“Num tempo de tabu e hipocrisias, nessa época de virtualismo exacerbado em que o falso moralismo e as máscaras (sentimentais, materiais e psicológicas) atuam num teatro de dissimulações, é preciso que a nudez feroz de um olhar crítico seja o canal de interdição da mentira e dos vernizes que tanto desumanizam, acanalham, apequenam e infelicitam-nos íntima ou socialmente” (p. 9).

(...)

“Whisner Fraga não deixa pedra sobre pedra nessas histórias pungentes em que cada personagem evoca seus fantasmas, dilemas, dramas e obsessões, detona a miséria moral de uma civilização em crise, colocando o status quo no banco dos réus” (p. 10). Lido o prefácio (que também poderia ser a sinopse, um texto de divulgação, a quarta capa, etc.), a vontade de mergulhar na obra só aumenta. 

Viro a página e me deparo com um estilo (gênero?) que, quando bem conduzido pelo autor, muito me atrai: a prosa poética. Aqui – no livro analisado – a poesia não está somente no interior das frases (escolha das palavras, aliterações, assonâncias, etc.), mas na própria estrutura da narrativa. De cara, nas primeiras linhas do primeiro conto (definiremos assim as prosas poéticas), é possível enxergar (sem necessariamente ler) uma forma narrativa não-usual: parágrafos iniciados em minúsculas (não há maiúscula na obra, o leitor com o tempo perceberá), sem o espaço padrão dos parágrafos (aquele entre a margem esquerda e a primeira palavra), terminados com vírgulas (e não com ponto final). Até a página 161 (o final do livro) será assim: 

“e se tivéssemos desistido, se percebêssemos que o melhor, helena, seria a tarde em família, a intimidade evitada, o incômodo convívio dos últimos dias desmantelado por uma certa boa vontade, por uma pitada de diálogo, quem sabe?,” – e aqui/assim termina o primeiro parágrafo. 

“o que devíamos ter feito”, o primeiro conto, é um diálogo (um monólogo com um interlocutor, talvez) entre o narrador e sua esposa Helena (helena, como tudo o mais no livro, em minúscula). Desde o início, o narrador reflete – através de questões (“e se tivéssemos desistido”) – sobre a possibilidade de algo ter sido diferente. A história se passa, principalmente, em uma mostra de arte, onde a família (o casal e a filha, Bia, de sete anos) vai para apreciar Kandinsky, passeio que resulta em “um desapontamento impreciso, ambíguo, pela realidade tão menor do que a expectativa”. 

É aí, inclusive – nesse momento, nesse espaço –, que o leitor se situa também, pois o narrador indica que na cidade há um surto de uma doença, amplificado pela mídia. É aí, também, que o leitor se depara com um perfil um pouco desconfiado do narrador, mas agora massacrado pela dor e pelas consequências de sua descrença nos fatos: “a menos de algumas ambiguidades ou adulterações nos dados, ocorreram algumas mortes, mas o que eram algumas mortes diante da solidez de nosso hábito?”. 

Todo o resto da história (o que podia ter ocorrido, mas não ocorreu, porque não foi feito) parece ser resultado desse passeio, nesse local, nesse dia, embora não haja uma relação clara de causa e consequência: “a menina em meu colo, entediada com o embaraçoso arranjo de cores, a menina e seu sono estorvado” (...) eu e a menina apertados entre uma pilastra e outra, entre um espectador e outro (...) quando aquele senhor espirrou perto de nós – e eu me recordo vivamente do homem a tentar esconder microrganismos detrás de um lenço –, e se naquele instante tivéssemos saído?”. 

Todas as questões, as angústias, o sofrimento pelo que aconteceu, as perguntas irrespondíveis, todas as hipóteses levantadas pelo narrador criam uma expectativa, uma espécie de suspensão do óbvio e, mesmo assim, o leitor precisa seguir com a leitura para ter certeza de que sua hipótese se confirmará. Se confirmada (quando confirmada), toda angústia – do leitor – se transforma numa espécie de sofrimento pela dor do outro (do narrador), sentimentos – angústia, dor, sofrimento – suscitados pela boa literatura. O resultado? A catarse. 

O segundo conto, “promessa”, narra a história de um acidente. Embora em terceira pessoa, a princípio (logo a seguir a primeira pessoa do plural surge, indicando uma segunda pessoa (“você), em cujo uso o narrador insiste a fim de transformar a menina em uma interlocutora), o ponto de vista é da menina que, numa kombi, segue em direção a um retiro junto com a irmã. Entremeio a memórias de sua família, do seu dia a dia, da sua cidade, ela fica apreensiva com a pressa do motorista da kombi, um padre cuja “batina serpenteia como a capa do batman” (p. 29). Até que o automóvel para num acostamento e a menina, curiosa ao extremo, quer saber o que acontece lá fora: uma tragédia. E é essa tragédia que a menina, atônita, acompanha: 

“...há uma vastidão de sangue nadando pelo asfalto, a desgraça escarlate piscando um acaso tão óbvio, tão puro, que a menina decanta o horror: não merece o grito” (p. 32). 

Como diz o próprio narrador no meio da história, “é muito fardo para a menina” (p. 35), que acompanhará os maiores horrores até, enfim, retomar a viagem e chegar à missa que deveria, mas não lhe traz conforto. 

“ambição”, o terceiro conto, é a história de um sonho e, ao mesmo tempo, de uma tomada de consciência da crueza da realidade. Quase tão denso quanto os dois anteriores, esta história parte de um sonho tão comum a muitas crianças e adolescentes brasileiros: a de se tornarem jogadores de futebol. Para isso, o menino bom de bola precisará participar de uma “seleção para novos atletas do juvenil no centro de treinamento do time de tejuco, neste final de semana” (p. 43). Tejuco – é bom frisar – “é uma monotonia pustulenta nas manhãs de domingo: a erva-doce arde na chaleira centenária, as velhas resmungam o flerte da morte, os gatos bocejam a vadiagem nos quintais” (p. 41) – todo o primeiro parágrafo serve para descrever o espaço e, assim, ambientar o leitor. No entanto, domingo em Tejuco, para o menino, é dia de jogo. 

E é lá (aí) que o pai, ao assistir o filho, se impressiona com uma falta batida por ele no campo do colégio, durante a educação física: “a bola obedece a um trajeto que combina uma subida magistral e uma queda repentina rumo à rede, fugindo das palmas enluvadas que perseguem inutilmente uma glória que, a partir daquela falha, jamais será delas” (p.42). É, afinal, o sonho do pai ou o sonho do filho? Jogos e jogadas, chutes, dribles e gols – tudo é descrito habilmente pelo escritor. Na última parte, “o contrato” (aí já sabemos que o protagonista se chama Júlio), o leitor se depara, enfim, com a cereja do bolo, com o que o ser humano permite para se dar bem, cada um com seus interesses pessoais. Ninguém se salva. 

As epígrafes merecem uma atenção especial: a do segundo conto é uma fala de Karen para Hank Moody, da série Californication; a do terceiro conto, “ambição”, um conselho de Aemon Targaryen para Jon Snow, da série Game of Thrones; a do conto “jardim provisório”, um diálogo do filme The big Lebowski. 

Neste último conto a interlocutora “de sempre” retorna: “a felicidade, helena, é um projeto em construção” (p. 56). Trata-se do conto mais misterioso do livro, diria, onde o narrador-personagem parece ser cobaia de um experimento: 

“primeiro espetaram as ventosas nos escaninhos da testa, corrupiaram uns botões daquele estranho engenho e um tremor me chacoalhou, uma incoerência se dependurou em minha cabeça, os dentes socaram o protetor que afundaram na boca, e eu senti o globo se esconder no crânio, não podia ver mais nada” (p. 57). 

Um experimento, é bom frisar, que não é possível saber, com clareza, o que é, porque as memórias do protagonista, que conta a história, “são só alegorias pós-choques, são dúvidas petrificadas depois de desligarem os aparelhos, depois que as descargas de eletricidade devastaram as evidências de que algo subsistiu em meio à fuligem dos dias” (p. 60). Só é possível saber que suas lembranças são confusas, apesar de nelas surgirem um pai, uma mãe (“deve ter havido uma mãe severa”), um irmão (“deve ter havido um irmão”), uma irmã (“deve ter havido”), um filho, uma família “que aos domingos almoçava fora”. Assim, só restou (só restava) ao narrador-personagem aceitar um passado de suposições. 

“caçada” – novamente em primeira pessoa e com “helena” como interlocutora ficcional do narrador – é sobre aventuras de crianças na roça, talvez em Minas, talvez em São Paulo, talvez em Goiás, mas com certeza em “um sítio que visitávamos a cada mês ou mais (...) aquela gleba de cerrado em que o sol depositava toda sua raiva contra a humanidade”. Entre ações e lembranças, a história avança até surgir o primo que, arisco, escaneava no outro as novidades com os olhos desconfiados. É uma história de inveja e vingança. 

“sopro” é um relato dolorido sobre o câncer de um amigo que “morria muito, morria vagarosamente, pacientemente” (p. 77). É um relato de alguém, perplexo, que acompanha tudo de perto. “amizades”, com seu título irônico e ambíguo, é a história de uma amizade entre duas mulheres que se confunde com algo a mais: “já fantasio o que poderíamos descobrir num sábado à tarde, livre dos filhos” (p. 84). Um acontecimento inesperado (um estupor negativo), no entanto, por meio de um telefonema, as retira daquele estupor positivo. 

O conto “jardins” faz referência ao bairro nobre de São Paulo de mesmo nome. Inicia-se com um personagem chegando a um prédio do bairro onde, lá em cima, se encontra com uma mulher com quem transa. Depois, decidem descer e passear juntos – e aí que o mais importante da história dá início: “desta vez deixo o carro no estacionamento e seguimos a pé: andamos lado a lado, muito próximos” (p. 102). O que parecia uma relação superficial (de namorados, ficantes, pessoas que acabaram de se conhecer?), a partir do passeio – pelo menos a impressão do leitor – muda, pois chegam na “avenida paulista interditada, com as pessoas de vermelho se aglomerando por tudo”. É uma manifestação. E se ficarem um pouco? E se escutarem um pouco? Eles terão uma noite interessante. 

“você está diferente” é um conto narrado em primeira pessoa por uma voz feminina. Mais poético e, sobretudo, mais metafórico, a linguagem dificulta o entendimento da história e exige uma maior atenção do leitor: “meu cérebro é um autômato preguiçoso de raciocínio” (...) “minha fome é o chacal e dali a pouco estava de novo reduzida, expulsando silenciosamente em golfadas turbulentas as misérias que não me fizeram sofrer além da antipatia” (p. 113-114). 

Além de “você está diferente”, há mais cinco contos, todos com as mesmas características dos anteriores: sem maiúsculas, ausência de pontos finais (exceto no final de cada texto), parágrafos que simulam – em partes – ora estrofes ora versos, linguagem poética, predomínio da primeira pessoa, além do aparecimento de “helena” como interlocutora ficcional do narrador. Whisner Fraga apresenta, na obra o que devíamos ter feito, histórias potentes, com um estilo seu, características de alguém que há muito domina suas ferramentas, as palavras. São histórias densas, com um estilo incomum, mas não necessariamente difíceis de serem lidas: estão à espera de um leitor corajoso. 

Publicado no final de 2020, em plena pandemia, embora não aborde explicitamente o contexto, não deixa de ter, em dois ou três contos (com destaque para “serenidade”, uma história meio kafkiana sobre uma praga, com características murilo-rubianas), um diálogo com o contexto em que surgiu, sobretudo por algumas temáticas abordadas: estupro, assédio sexual, manifestações políticas, a dor da fome, racismo – tão fáceis de se tornar qualquer outra coisa diferente de literatura. Whisner Fraga, magistralmente, em momento algum permite que isso aconteça. o que devíamos ter feito é, tão somente, literatura.


Sinvaldo Júnior é professor, pesquisador acadêmico e revisor de textos (Textifique Soluções em Textos). Publicou diversas resenhas, artigos de opinião e artigos acadêmicos sobre leitura e literatura, com foco em obras e autores brasileiros. É admirador de Carlos Drummond de Andrade, Campos de Carvalho e José Saramago. Mora em Uberlândia-MG.



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