15 de dez. de 2021

Clarice, a insegurança e o peixe

 

Por Isabel Peixoto

Ele estava só.
Estava abandonado,
feliz, perto do selvagem
coração da vida.
James Joyce

Uma coisa que acredito que seja unânime é a falta de confiança. Mesmo as pessoas extremamente seguras, algum dia na vida sentem insegurança nas mais diversas situações, seja no início de um relacionamento amoroso, em uma entrevista de emprego, ao contar uma notícia complicada para alguém, ao confrontar um familiar... 

Seja lá qual for seu bicho-papão, ele muda de acordo com seu desenvolvimento, às vezes encolhe, às vezes fica maior que um arranha-céu, o certo é que ele vai dar o ar da graça, mais dia, menos dia. E quando isso acontece, putz!, que confusão. 

Essa reflexão me trouxe de volta para um livro de Clarice Lispector que eu havia começado e abandonado no início, pois achei a narrativa confusa e bagunçada, e ainda que seja intencional e precisamente dá o tom e a genialidade do texto, no momento que peguei o livro não consegui comprar a narrativa. 

Não me afeiçoei a Joana, a protagonista, não queria ouvir o que ela tinha para me dizer... Talvez porque quando nos identificamos com alguma coisa, um instinto quase sobrenatural de proteção nos puxa (ou me puxa) para trás. 

Hoje, no meio do estressante processo de lidar com a morte de um bichinho de estimação, meu peixe, senti vontade de mergulhar novamente na confusão de Joana. Dessa vez, prestando atenção e lendo em outro ritmo, sem procurar um compasso conhecido, sem querer encaixar o livro nas caixinhas da minha cabeça: “esse é romance”, “esse é suspense”, “esse é poesia”... Não, esse é Clarice, e não precisa ser nada além disso. 


Outra coisa: se tinha alguma dor e se enquanto doía ela olhava os ponteiros do relógio, via então que os minutos contados no relógio iam passando e a dor continuava doendo.

Fonte: Perto do coração Selvagem, página 14. 

Em algum aspecto, a insegurança que sentimos nos aproxima e nos isola, ao mesmo tempo, daqueles que nos querem bem e de desconhecidos por toda parte. Uma doença que atinge o mundo inteiro faz com que sintamos solidariedade por uma pessoa na Costa do Marfim ou na Alemanha. Uma nova variante do vírus mortal que nos assola há dois anos nos deixa mais inseguros em sair na rua, logo quando estávamos voltando a ver se o mundo ainda dava pé! 

Mesmo nessa integração, a solidão persiste, coexiste, quase em simbiose com todos os outros sentimentos. “Será que o chefe gostou da minha apresentação?”, “Talvez eu tenha sido persistente demais com meus pais”, “Acho que fui muito duro com meu filho”. Milhares de pensamentos como esses percorrem nossa mente todos os dias, dando giros e pontapés desagradáveis. 

É possível que esse seja um lado bom da insegurança, parando para pensar, o fato de possuirmos a capacidade de questionar nossas decisões é uma das coisas que nos permite mudar, evoluir e, quem sabe, nos tornar pessoas melhores. Mas, é claro, tem dias em que eu não quero ser uma pessoa melhor, só quero estar com raiva e desejo, grosso modo, que qualquer um dos milhares de peixes do mar tivesse morrido, e não o meu. 

(Ainda que, na verdade, eu não deseje que peixe algum morra, faz parte da vida.) 


O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera?

Fonte: Perto do coração Selvagem, página 16. 

Clarice provavelmente não imaginou que as páginas iniciais de seu livro de estreia, publicado pela primeira vez em dezembro de 1943, fosse levar alguém, em dezembro de 2021, a uma reflexão sobre a insegurança humana e a morte de um peixe. No entanto, de qualquer forma, quem somos nós (eu) para pretender saber o que imaginaria Clarice Lispector? 

 

Essa talvez seja minha parte favorita da literatura, o poder de ultrapassar as décadas, de ser ressignificada, de novo e de novo, tantas vezes, por um número sempre maior de leitores. Seguimos em frente, com nossas dúvidas e inseguranças, morte e vida, pois “é preciso não ter medo de criar”, diz Clarice, ou melhor, diz Joana. 

Para te ajudar nas suas inseguranças, Perto do Coração Selvagem pode ser uma boa compressa quente para emoções. Focar na confusão de outrem talvez alivie a sua. Em todo caso, Clarice tem mais conselhos, e frases geniais, e situações tão próximas que chegam a constranger o leitor, o incômodo maravilhoso de um bom livro. 

Deixo aqui uma frase, da página 20, para lhe deixar curioso e te levar até a feiticeira das palavras. Leia Clarice! 


Estou cansada, agora agudamente! Vamos chorar juntos, baixinho. Por ter sofrido e continuar tão docemente. A dor cansada de uma lágrima simplificada. Mas agora já é desejo de poesia, isso eu confesso, deus. Durmamos de mão dadas. O mundo rola e em alguma parte há coisas que não conheço. Durmamos sobre Deus e o mistério, nave quieta e frágil flutuando sobre o mar, eis o sono.

Fonte: Clarice Lispector, Perto do Coração Selvagem, página 20.


REFERÊNCIA: LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.