Por Allyne Fiorentino
Estive
com receio de escrever sobre o livro de Mar Becker desde que o li. Não por
melindres de a conhecer e nem pela possibilidade de colocarem em xeque minha
imparcialidade, mas porque qualquer palavra dita poderia esfacelar em pó essa
experiência de leitura que tive. Pelo mesmo motivo, não li nenhuma resenha, nem
crítica, nem mesmo o prefácio do livro. E sinto mesmo dizer que não serei
imparcial, tão pouco farei uma resenha, acho que essas linhas serão uma
percepção apenas, porque meus sentidos me traem ou, melhor dizendo, são
verdadeiros até as entranhas, porque esses poemas eu os “pensei sem
pensamentos”, como diria Caeiro, e é como eu diria para todos que irão ler essa
obra: estejam nus. Literal ou metaforicamente nus para essa experiência.
Ler A mulher submersa é uma experiência sensorial acima de tudo, diria quase corpórea... como se meus dedos passeassem pelas páginas de seu corpo, pelas palavras de seus pelos, pelas frases de seus seios, pelas gotas de suor que guardam seus segredos submersos, contados baixinho, aos sussurros, como as mulheres têm feito todos esses anos. Esse sentimento dissonante certamente foi experimentado por inúmeras leitoras, tornando esse livro um códice secreto feminino: só as mulheres podem entendê-lo com o corpo. Não é à toa que os números de venda desse livro superam expectativas para o gênero poesia. Embora a escrita de Mar Becker seja extremamente refinada, com profundidade e interconexões cultíssimas, sua palavra alcança muitas pessoas porque para além do que está escrito, há aquilo inominável, tecido de maneira certeira e invisível.
Ao adentrarmos esse santuário criado pela poeta, automaticamente somos envolvidas por um manto, pois é um lugar (se é que podemos chamar assim) em que todas as mulheres são sacralizadas, são abraçadas. Não é somente nos versos longos e nas belas construções alinhavadas à perfeição, mas nos silêncios entre versos é que encontramos essa essência inominável das coisas que estão por serem ditas, mas nunca são, dando essa sensação do apagamento, das nubilosas vozes que estão fora da linguagem.
Remete-nos a um tempo em que nós, mulheres, “e o mar ainda éramos um mesmo projeto” (p. 63), origem da vida da Terra e dos Homens, um fim em si mesmas. Evocando Safo, Virginia Woolf, Ana Cristina César e Alfonsina Storni mas não de uma maneira melancólica e dramática da morte, mas demonstrando, talvez, o regresso à origem, às vozes das quais somos feitas e que, constantemente, nos chamam, nos cobram, nos relembram de coisas de tempos imemoriáveis.
“Digo
seu nome virginia minha boca ilumina-se/ minha voz canta teu corpo de mulher
submersa” (p. 40) – Virginia Woolf, que ouvia vozes, atirou-se num rio com
o bolso cheio de pedras. “Safo enrolada da cabeça aos pés aos fios do seu
próprio cabelo escuro, como se vestisse um manto / de tão morta, safo – tão
luminosa” (p. 38) – em uma das versões da história de Safo, ela se joga de
um penhasco à beira-mar por sofrer de amor por homem, mas como é sabido, a
homossexualidade dela foi talvez seu maior sofrimento. “Em um milênio todos
os mares estarão rebentando num único mar/aos pés de ana cristina cesar/na
praia de Copacabana” (p. 41) – Ana Cristina Cesar, em depressão, joga-se da
sacada de um apartamento em Copacabana. “Foi numa manhã de outubro que alfonfina
srtorni escreveu o poema me voy a dormir, antes de caminhar até a praia
e morrer no mar” (p. 18) – Alfonsina Storni, ao descobrir um câncer de mama
e passando por inúmeras dificuldades financeiras e emocionais lança-se ao mar.
Todas são mulheres escritoras que enfrentavam grandes empecilhos para
continuarem a escrever, sejam empecilhos financeiros, emocionais ou sociais.
Agora, todas submersas, continuam existindo nas vozes de seus escritos, mas
também nos corpos de todas as mulheres (ainda) não submersas.
Passei a acreditar que somos todas mulheres submersas e nos comunicamos por cantos aquáticos, um infrassom de baleias e sereias. É possível, estando perto o bastante, “o ouvido colado numa concha/para ouvir o mar”, ouvir “o silêncio chamando por ti” (p.19), os cantos de mulheres submersas evocando os cantos adormecidos em nós, refletindo, qual espelho d’água, porque sob as águas nos diluímos e emergimos como muitas.
Sendo líquidas, estamos em todos os lugares, em todas as imagens poéticas que encontramos nos poemas de Becker: no mar, no vapor, na respiração, na chuva, no dilúvio, no lago, no sêmen, na cerração. Na lascívia doce com que ela tece sua mulher submersa, a imagem feminina mescla-se aos objetos da casa, mimetizando-se perfeitamente às cortinas, às vidraças, aos tecidos. A sensação de uma verdadeira sombra atravessando os ambientes que ela descreve de maneira bem indireta, como se tudo fosse uma coisa só.
A presença fantasmagórica dessas mulheres, das vivas e das mortas, também é ressaltada pela figura da avó Maria Manoela no trecho: “enquanto durmo, minha avó maria manoela regressa” (p.73), porque como ela mesma explica em versos anteriores “toda família tem mortos que precisam ser vingados” (p.72). Toda família carrega, de fato, os fantasmas de mulheres que sofreram, que sacrificaram seu corpo e sua mente, que foram agredidas, apagadas intelectualmente, que foram até mesmo assassinadas...
Essa marca de machismo dentro das famílias, que acontece submerso nas histórias de família nunca contadas, que são guardadas em segredo absoluto é também outro traço que nos une como mulheres: temos todas fantasmas femininos para conviver, temos mulheres ancestrais que talvez se sacrificaram para que pudéssemos existir hoje. Nossos passados têm similaridades e, por isso, nossos presentes também se identificam, mesmo sem termos essa consciência.
E como é bonito o trabalho dos versos ao demonstrar como uma mulher emerge de outra: a mãe que emerge da avó morta nos versos “mulher vinda da ausência de outra, da ausência da história de outra. Mulher vinda de uma não-mulher/ de um não-corpo/de uma não-voz” (p.78), essa mulher que nasce sob a violência e que talvez carregue essa marca no olhar, no corpo, uma marca física de uma dor secular. E, em certo momento, o eu-lírico deixa claro que essa presença mítica da avó que foi calada permanecia mais viva do que nunca: “ter sempre em mente que havia entre nós uma mulher/ que foi morta/ uma mulher que foi calada” (p.83).
Pausa para um desabafo – E entrando na seara do machismo, devo confessar aqui bem baixinho para que ninguém possa ouvir, que eu mesma presenciei (e entrei em uma briga!), por causa de seu livro, Mar Becker, por ver o veneno do machismo tentando diminui-lo nas mesas de bar, nas rodinhas de homens que doídos de inveja não conseguiram tocar os outros com seus poemas. Mas você, em sua estreia, chegou ao Top 5 finalistas do Jabuti, venceu o prêmio Minuano e vendeu mais do que eles sonham vender. Você, Mar, sem compadrios, sem tentativas de estrelismo, sem muitas conversas e aparições, submersa, sussurrando, você chegou lá aonde esses homens que tentam te diminuir (sem sucesso) não chegaram, nem sequer passaram perto. E sabe por quê? Por que em nós, mulheres feridas, “mesmo o sussurro tem a força de um grito” (p. 19). – Fim do desabafo.
Se o segredo da vida e da morte pode ser escrito em uma esmeralda, “o ideal de um livro é que seja escrito numa asa” (p. 44), na asa de uma borboleta ou de libélula, ser leve, que possa voar e ser livre, mas ao mesmo tempo também ser belo e frágil. Para escrever com profundidade é relativamente fácil, basta anos de estudos ou uma alma iletrada, mas profunda, entretanto para que a profundidade se torne leve é preciso estar no limiar de dois mundos, na beira do abismo prestes a se jogar na água.
“À parte do reino”, última seção de A mulher submersa é uma série de poemas que fecham brilhantemente esse livro. O que nas páginas anteriores vem sendo mostrado delicadamente rebenta em uma explosão de conexões, como se precisássemos de uma derradeira prova de que todas somos uma e vice-versa. E por isso, embora impossível, eu gostaria de presentear cada mulher do mundo com esse livro e recomendo que o leiam, que o sintam. Se forem mulheres das Letras, como eu, tentem ler inocentemente primeiro, sem pensar em séculos de teoria e crítica literária pesando sobre nossas asas. Abracem a Recepção, que talvez seja o encontro com o texto mais urgente hoje.
Encerro,
portanto, com um poema completo:
senhor meu deus, tu não me
ouves
não ouves a mim, que sou
mulher
a elas, que são mulheres
a nós
ainda assim continuaremos
pedindo por ti
noventa e poucos anos, e
estaremos de joelhos à beira da cama
antes de dormir
sei que será em vão
tu não descerás
não entrarás nos nossos
quartos
a verdade é que tens medo
de nós, nossas mãos ao alto num pai-nosso
os dedos tortos, deformado
pela artrose
pelo frio
tens medo do abajur aceso
dos gestos se erguendo e
compondo na parede um teatro de sombras
tens medo, senhor meu deus
do animal faminto que
somos à espreita
as mãos escuras no fundo
branco
como as garras de uma ave
de rapina.
Allyne Fiorentino é mineira e mora em São Paulo. Mestra em Estudos Literários pela Unesp, especialista em Design Instrucional e graduada em Letras Português/Espanhol pela UFTM. Atuou na área de pesquisa Teoria e Crítica da Poesia, sobre Simbolismo brasileiro e hispano-americano, estudando os autores Cruz e Sousa e Rubén Dario. Mais recentemente atua na área de novas tecnologias aplicadas à Educação a Distância e autoria de material didático. É apaixonada por Literatura Feminina e pelas questões sócio-históricas femininas.