25 de mai. de 2021

Trem

Por Carla Guerson

 

O trem está partindo e mais uma vez Laura não teve coragem de embarcar.

Retorna com sua mala vermelha e a coloca de volta no porta-malas. Já perdeu as contas de quantas vezes fez esse mesmo movimento. Olha para o espelho esperando a vermelhidão dos olhos diminuir. Dá a partida no carro, liga o rádio no volume baixo, a dor de cabeça companheira reaparece.

Ainda faltam alguns minutos para o horário das crianças chegarem da escola. Laura estaciona o carro na rua de casa e resolve continuar ali. Mantém o ar condicionado ligado, contrariando sua predisposição. Ouve a voz interna de seu pai alertando-a para o desperdício de combustível. Mandaria se fuder, se ele estivesse vivo.

As crianças saem do transporte escolar e Laura consegue ver que estão brigando. A cena repetida só faz aumentar ainda mais a vontade de não se mover. Vê os filhos entrando, Cida os recebe. Dentro de casa, os olhos da memória lhe revelam todo a sequência de acontecimentos: mochilas jogadas, almoço, gritos, louça, televisão.

Ela resolve não entrar, um pequeno gesto de covardia. Manda uma mensagem de voz à empregada avisando que teve um imprevisto e vai almoçar fora. Já de volta ao centro, embora esteja com fome, resolve não comer e se senta no boteco ao lado do consultório, pede uma cerveja de garrafa.

O relógio da parede avisa que faltam 15 minutos para a próxima sessão. Laura confere na agenda o nome do paciente: Gerson, o rapaz que se parece demais com seu primeiro namorado.

O gole desce gelado enquanto a lembrança pede licença para se instalar. O beijo furtivo no cinema, as mãos geladas, o frio na barriga. A tristeza feroz que a tomou quando ele foi embora da cidade. A urgência, a intensidade. A ânsia de viver da juventude contrastando com a inércia de agora.

Paga a conta e se dirige ao prédio comercial onde divide um consultório com outra psicanalista. Senta-se na poltrona e ouve com atenção a história de Gerson, que poderia ser a de qualquer outro garoto com dificuldades de aprendizado e pais rígidos.

Na mão, anotações em um papel. A cada paciente, o pensamento viaja.

Na estação o trem sai todo dia às 12:45. 


Carla Guerson. Feminista, escritora, leitora compulsiva, uma apaixonada por narrativas. Escreve contos, poemas, crônicas, publica em revistas literárias e no site https://carlaguerson.medium.com/. Participou de duas antologias e está escrevendo seu primeiro livro, O som do tapa (Editora Patuá).