Por Ricardo Novais
Centro da cidade. Pandemia. Passei em frente a uma livraria, comprei um livro. Entrei no metrô e coloquei-me a folheá-lo. Livro estranho! Comecei a rir. Como podia aquilo? Um cara se transformando em uma barata?
Saltei na estação das prostitutas. Andei duas quadras ofegante dentro da máscara: andando, lendo e tropeçando no lixo humano jogado na calçada. Cheguei à minha casa, joguei-me no sofá. Toda a sujeira do vírus das ruas estava em mim. Abri uma garrafa de cerveja, continuei devorando o livro; um homem que virou uma barata...
Alguns minutos se passaram, chegou uma mensagem:
"Fala, Samuel, seu veado; vamos sair para tomar umas cervejas por aí?".
Era o Beto, o cara vivia nos botecos e puteiros mais pulguentos. Eu respondi para ele que ia, e ia mesmo, apesar da pandemia, mas fiquei foi lendo o livro do cara que virou uma barata. Li até o fim. Tomei banho, olhando para ver se encontrava alguma barata no chão, ou mesmo uma mosca varejeira no ar, um inseto qualquer naquele banheiro; não vi nada. Acabei de me vestir, matei a cerveja quente e sai de carro. O carro quebrou na rua debaixo, deixei-o lá e fui andando pelo bairro.
Ao virar a esquina, percebi um assalto à mão armada. Dois homens em uma moto estavam atirando em outro sujeito dentro de um carro preto e roubando uma maleta. Abaixei-me, por impulso, tentando me esconder. Não me viram, a rua estava deserta e escura como se todos ainda estivessem se protegendo numa pandemia. Não estavam. De repente, um silêncio urbano; um barulho surdo tomou conta do bairro, da cidade. Levantei-me. Aproximei-me do veículo, desligado, estacionado ao meio-fio. Ao olhar para dentro do carro, vi que um homem de meia-idade, de terno e gravata, estava sangrando pelo lado esquerdo do rosto. Ele respirava; estava vivo ainda, de máscara, mas eram os últimos momentos daquele desgraçado, pensei.
O homem ferido levantou uma das mãos, gemeu de forma estranha e se sacudiu violentamente. Lembrei-me do livro que tinha lido poucos minutos antes; seria possível, caro amigo leitor indiscreto à alma e querida leitora investigadora psicológica, que aquele homem estivesse se transformando em uma barata, um grande inseto humano?
Pensei em ligar para a polícia ou para o SAMU, mas não liguei. Ainda havia uma pandemia virulenta. Ergui-me, devagar, virei de costas e fui andando em direção ao retumbante silêncio urbano.