7 de dez. de 2020

Como uma sombra esquálida

Por Milton Rezende

 

A cor suja

Mil noites de sono

e o abismo intacto

A beleza da árvore

e do peixe

A máscara da maldade

filtrada pelo telefone

O sorriso do triunfo provisório

A dor latente e as pancadas na parede

A pedra que dissolve o leite.

  

A queda

Não digo que estou

no fundo do poço

porque este não é mensurável

e sempre se pode cair mais ainda.

Mas estou numa queda livre

e vertiginosa.

A roupa do passado não me serve,

o presente é roto

e estou sem vestes para o futuro.

E numa queda os laços vão-se rompendo,

se dissolvendo,

desagregando-se.

Nenhum laço segura um homem

que cai por muito tempo.

A dignidade é uma palavra para pessoas de pé.

Na horizontal os conceitos são outros.

  

Ímola

Eu vejo a morte

deslizar sua sombra

discreta pelos boxes

da Fórmula 1, sem

que a percebam.

 

Na véspera,

eu a vejo checar

cada componente

e inscrever neles

o seu desígnio.

 

Eu vejo a morte

perfilar-se junto

ao grid de largada

no circuito da Itália,

e ali sendo aceita.

 

No instante seguinte

eu a vejo fluir

sobre o cockpit

e se postar com a foice

na lateral do muro.

 

Eu vejo a morte

(que todos afinal viram)

nas imagens concretas dos

destroços que explodiam

nas telas de todo o mundo.

 

Depois eu a vejo

como uma sombra esquálida

que se retirava de (S)cena, 

deixando o espetáculo para

os protagonistas vivos.

Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências (Multifoco, 2011), esgotado.