Por Milton Rezende
A
cor suja
Mil noites de sono
e o abismo intacto
A beleza da árvore
e do peixe
A máscara da maldade
filtrada pelo telefone
O sorriso do triunfo provisório
A dor latente e as pancadas na parede
A pedra que dissolve o leite.
A
queda
Não digo que estou
no fundo do poço
porque este não é
mensurável
e sempre se pode cair
mais ainda.
Mas estou numa queda
livre
e vertiginosa.
A roupa do passado não
me serve,
o presente é roto
e estou sem vestes para
o futuro.
E numa queda os laços
vão-se rompendo,
se dissolvendo,
desagregando-se.
Nenhum laço segura um
homem
que cai por muito
tempo.
A dignidade é uma
palavra para pessoas de pé.
Na horizontal os
conceitos são outros.
Ímola
Eu vejo a morte
deslizar sua sombra
discreta pelos boxes
da Fórmula 1, sem
que a percebam.
Na véspera,
eu a vejo checar
cada componente
e inscrever neles
o seu desígnio.
Eu vejo a morte
perfilar-se junto
ao grid de largada
no circuito da Itália,
e ali sendo aceita.
No instante seguinte
eu a vejo fluir
sobre o cockpit
e se postar com a foice
na lateral do muro.
Eu vejo a morte
(que todos afinal viram)
nas imagens concretas dos
destroços que explodiam
nas telas de todo o mundo.
Depois eu a vejo
como uma sombra esquálida
que se retirava de (S)cena,
deixando o espetáculo para
os protagonistas vivos.
Do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências (Multifoco, 2011), esgotado.