21 de out. de 2020

‘Soda Cáustica Soda’ – um livro corrosivo

Por Krishnamurti Góes dos Anjos

Em janeiro de 2017 escrevi o seguinte sobre o livro Fragmentos de um exílio voluntário do escritor Lúcio Autran: “Autran nos apresenta uma obra em que se observa a conciliação entre expressividade e artesanato verbal. Suas angústias e inquietações ganham vida e se manifestam construindo uma poética presa à realidade e dirigida ao intelecto onde a experiência humana de nosso tempo nefasto é posta em evidência. O resultado é que temos contato com uma obra de lastro existencialista a constatar como as relações humanas caminham rumo ao aniquilamento”.

Reencontro o autor agora na publicação de Soda Cáustica Soda, e com redobrada admiração observo que cada vez mais ele afina o seu tino crítico e uma sensibilidade que não deve calar. Essa nova obra se constitui em alentada reunião de textos que apresenta ao leitor poemas belíssimos como “Horas”, “O aprendiz de insônias”, “Três cabrestos”, “Pandora 2018”, “Século XXI”, “Nove degraus e um pássaro numa tarde de verão”, dentre vários outros.

É flagrante o desalento diante do mundo contemporâneo. E não poderia ser diferente. Nossos dias são mesmo difíceis, dilacerantes, angustiantes. Há desencanto, mágoa, ironia, muita dor e uma espécie de pesadelo que não acaba. Em “A procissão dos enfermos no cais do desterro” (poema em prosa), há um lirismo pungente que nos toca profundamente, porque nos perguntamos: o que será afinal do humano?

Em “Desespero”, o leitor se depara com o seguinte trecho:


“Alguns poucos ainda buscam por bússolas tontas sussurrando o vento norte, mas não há vento nem norte, não há esperança de fuga, só uma porta ainda os separa do tempo dos homens, a mesma porta que os levará para fora do tempo e dos homens. Ombro a ombro, suores em febre misturam-se afluentes, roçam as peles em pânico no rumor da força da multidão amalgamada na fúria de quem descobriu um insepulto fim, sem escatologias.

 

Uma morte sem cadáveres da qual eles morrem todos os dias.”

E, no entanto, olhemos para outros ângulos dessa sensação de fim de mundo: sempre há e haverá reconstrução, vide, a propósito, todos os poemas da última parte da obra, “Seis danças desconexas para a sexta década”, dedicados ao filho do autor (que esperança maior poderia haver?). É nessas frestas de reconstrução eterna da vida que a linguagem poética busca luz no fim do túnel.

Soda Cáustica Soda é título corrosivo sem dúvida. É o é nas 16 partes em que está dividido e que levam títulos como demônios, cicuta, escatologias, exílios, dezembro entre escombros, dentre outros. Há porém, entremeados àqueles poemas cáusticos, outras partes agrupando poemas a que o autor deu o título de “Contrapontos”. Não é por outra razão que o poeta André Caramuru Aubert, que assina o prefácio da obra, afirmou que ressoa em suas páginas “um profundo lirismo, mesmo quando à primeira vista se insinua épica ou corrosiva. No poeta Lúcio Autran, o ‘bardo épico’, o ‘poeta amargo’ e o ‘eu lírico’ se misturam e se confundem em poemas que muitas vezes parecem pedir, por um lado, uma leitura íntima, silenciosa, num sofá aquecido por uma taça de vinho e pela luz amarelada de um abajur noturno, e por outro lado, exigem, sem fazer concessões, uma declamação feroz, no centro de um palco, voz alta com timbre de tenor, com o rosto crispado e braços abertos” .

Verdade – o leitor se depara com essa grande habilidade do autor em versejar com profundidade, tanto em poema curtos e concisos, quanto nos longos, com tendência épica. Há, inclusive, poemas em prosa e aqueles outros em que surgem sugestões visuais na página impressa.

Há ainda outro aspecto crucial nessa obra. No ambiente em que vivemos no mundo, e sobretudo no Brasil (atualmente abatido pela discórdia imbecilizante e pela intolerância histérica – e não se deixe de ler o poema “A besta qualificada”), Lúcio Autran empreende experiência radical de engajamento estético-político, cujo risco dá consistência e fibra a uma poesia que se emancipou da estreiteza ideológica e poética e soube tirar proveito artístico do exame de seus limites e de sua ação. Lembramos ainda, a título de reforço, que a poesia é política. Pode até não tratar disso diretamente, mas é um ato engajado. E política, nos versos, não significa tratar somente de fatos e desgovernos, mas de ressignificar símbolos. E entenda-se que ressignificar símbolos não espelha unicamente o protesto puro e simples. Exprime o perscrutar o porquê isso ou aquilo acontece em nossas vidas. Decorre disto, seguramente, as saídas que podem iluminar. A começar pela publicação de um livro como este.

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