5 de set. de 2020

Pastor João

Por Ricardo Novais

__ Não tem que se fazer de coitadinho, não, irmãos! O povo quer homem de coragem, que tenha atitude. Esse negócio de ser humilde... Ih! Não, não, não! Humildade não arrecada, não, irmão! Entendeu como é que é o negócio? Entendeu como é que é? Não pode ser tímido, não tem que ter vergonha de pedir! Se um não dá, outros tantos dão. E assim vai a obra de Deus... Aleluia, irmão! A obra continua... Tem que perguntar pro irmão é na cara, é na cara: Vai contribuir, irmão? Se não for, dane-se! Outro vai! Se um irmão não quiser seguir o caminho de Deus, outro seguirá no lugar dele. Entendeu como é que é o negócio? Entendeu como é que é?


Era uma festa fantástica! Na marina, iates e lanchas repletas de comida, mulheres e até uns drinques exóticos. Era a reunião da igreja. Pastor João ensinava com maestria a arte da persuasão para guiar o rebanho. Sem dúvida, um grande guia! O dízimo do povo de fé patrocinava aquela festa e outras tantas, além de viagens ao exterior, carros de luxo, lanchas, iates e até mulheres da moda; sempre com o perdão divino. Errado? Ora, não era errado! Eram almas sendo salvas...

__ O povo quer um messias, dê um messias ao povo, mas não tenha vergonha de cobrar pelo serviço. Deus está no coração dos fiéis... Entendeu como é que é o negócio?

__ Sim, pastor! – respondíamos gargalhando e, de certa forma, admirando aquele grande homem temente a Deus.

A vida era boa, Deus sempre no caminho e muito, mas muito dinheiro entrando pelo ladrão. Eu era rico, abençoado por Deus, sendo o braço direito, ou esquerdo, isto pouco importava, do pastor João. Minha família era reta, refinada, devota dos bons costumes cristãos. Minha mulher era esposa bonita, doméstica, cordial, discreta, obediente – e, mesmo sem usar maquiagem e roupas extravagantes, era boa para a procriação: deu-me dois filhos que seriam grandes homens, um médico e outro advogado. Tudo que eu tinha a fazer era cuidar das finanças da igreja; pode parecer que não, leitor fiel, mas o trabalho de contar dinheiro miúdo era grande. “Do dinheiro pequeno que se faz a fortuna grande, irmão”, sempre dizia pastor João.

Todos os dias eu saía tarde da igreja, estava cansado e ficando doente. Um dia bem trivial, minha pressão arterial foi às alturas; temi a Deus e supliquei-lhe por perdão. Em seguida, após orar por mais de uma hora ajoelhado com a Bíblia na mão, resolvi ir descansar. Fui para casa, surpreendendo minha esposa. Na cama, Solange e pastor João. Nus! Eu tinha um revólver na escrivaninha, mas não podia atirar neles, afinal, eu era um homem de Deus. Saí de casa.

Duas semanas depois, voltei para casa. Não toquei no assunto com Solange. Pastor João me deu um conselho:

__ Gilvan, isto não foi nada. Cale quieto! Continue a faturar na obra de Deus.

Assim foi. O leitor cristão pode achar que aceitar a traição era viver em pecado; não era! De cada cinco notas miúdas contadas nos cofres da igreja, duas eram para penitência. Copiando o esquema do próprio pastor João, em três anos, eu já tinha mandado mais dinheiro para um paraíso fiscal na Europa do que o próprio pastor e sua maldita igreja...

Havia chegado a hora!

Desliguei-me da igreja após um ano e meio juntando parte da verba do dízimo em minha conta. Havia uma investigação em cima do Pastor João por desvio de dinheiro, restou pública uma planilha com dados de uma conta bancária no exterior em nome de João Carlos de M. Silva. O pastor foi preso.

Tempos depois, quando ainda cumpria pena, pastor João escreveu uma biografia onde revelou que fora violentado na cadeia e que era um homem ainda mais temente a Deus. Ao sair da prisão, recuperou a reputação cristã e construiu o maior templo cristão de todo o continente.

Não tive mais contato com aquele grande guia de rebanhos. Separei-me da obra de Deus, da esposa, dos filhos e da compra e venda de almas fiéis por dízimo contado. Montei uma casa noturna e passei a só comprar e vender mulheres (ou a comprar e vender as suas almas), que não deixam de ter almas fiéis.