Por Milton Rezende
À mercê das águas
O que restou de mim
(a essa
altura da vida)
é apenas uma
obsessão por
estar em
silêncio. Não que
eu busque
nele algum sossego,
pois não há
nenhuma paz
no meu
silêncio de lenha velha.
É apenas
esse desejo de deixar
a vida
correr estando eu fora
dela, como
um agregado que perde
a proteção e
ao perdê-la sente
que não
precisava mesmo disso.
Quero que
tudo o mais ande
(pois que
tudo deve andar
pela lógica
mesma da vida).
Mas eu, como
um algo à parte
que sou,
quero parar por tédio,
essa palavra
que define tudo.
Quero ficar apenas observando
a chuva e as
reações que ela provoca
nas pessoas.
E depois sair para
desvendar
sua verdade líquida onde
estou a
derreter-me como um pequeno
bloco de
gelo que desgela, secamente.
O trabalho dos dias
Não posso dizer da vida
e de sua
quantia, pois
não tenho
como me reportar
a uma
experiência anterior.
A vida, em
função disto,
talvez seja
mais símbolo
e espaço do
interdito do
que o vivido
propriamente.
Refugia-se
em mim, no escuro
do verbo
existir, a ausência
de sentido
num cotidiano
excessivamente
meu e nulo.
Pessoa
a
Alberto Caeiro
Existe em mim
uma pessoa
diversa
da pessoa
que sou
e embora eu
aspire
a segurança
de ser
único, esta
pessoa
vive em mim
como um
delírio de
nós dois.
Estabelecemos
uma relação
de
estranheza e admiração
por esse
mistério que
somos nós em
nossa ausência
de um rosto
próprio.
Mas somos
(apesar de
não o saber)
aquilo que
podemos ser
e nos
fazemos "graves
como convém
a um deus
e a um
poeta".
Do livro Inventário
de sombras (Editora Multifoco). Exemplares esgotados.