6 de set. de 2020

Não há nenhuma paz no meu silêncio

Por Milton Rezende


À mercê das águas

O que restou de mim

(a essa altura da vida)

é apenas uma obsessão por

estar em silêncio. Não que

eu busque nele algum sossego,

pois não há nenhuma paz

no meu silêncio de lenha velha.

 

É apenas esse desejo de deixar

a vida correr estando eu fora

dela, como um agregado que perde

a proteção e ao perdê-la sente

que não precisava mesmo disso.

 

Quero que tudo o mais ande

(pois que tudo deve andar

pela lógica mesma da vida).

Mas eu, como um algo à parte

que sou, quero parar por tédio,

essa palavra que define tudo.

 

Quero ficar apenas observando

a chuva e as reações que ela provoca

nas pessoas. E depois sair para

desvendar sua verdade líquida onde

estou a derreter-me como um pequeno

bloco de gelo que desgela, secamente.

  

O trabalho dos dias

Não posso dizer da vida

e de sua quantia, pois

não tenho como me reportar

a uma experiência anterior.

 

A vida, em função disto,

talvez seja mais símbolo

e espaço do interdito do

que o vivido propriamente.

 

Refugia-se em mim, no escuro

do verbo existir, a ausência

de sentido num cotidiano

excessivamente meu e nulo.

  

Pessoa

a Alberto Caeiro

Existe em mim

uma pessoa diversa

da pessoa que sou

e embora eu aspire

a segurança de ser

único, esta pessoa

vive em mim como um

delírio de nós dois.

Estabelecemos uma relação

de estranheza e admiração

por esse mistério que

somos nós em nossa ausência

de um rosto próprio.

Mas somos

(apesar de não o saber)

aquilo que podemos ser

e nos fazemos "graves

como convém a um deus

e a um poeta".

  

Do livro Inventário de sombras (Editora Multifoco). Exemplares esgotados.