1 de jul. de 2020

Os colunistas d’O Bule entrevistam João Anzanello Carrascoza


João Anzanello Carrascoza nasceu em Cravinhos (SP). É autor dos romances Caderno de um ausente, Menina escrevendo com o pai e A pele da terra, que compõem a Trilogia do Adeus, além dos livros de contos Aquela água toda e Diário das coincidências, entre outros. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas. Recebeu os prêmios Jabuti, APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Fundação Biblioteca Nacional e os internacionais Guimarães Rosa (Radio France) e White Ravens (International Youth Library Munich).

  

Rogers Silva: Sou muito afeito à prosa poética. Acredito em sua potencialidade. Uma obra como Amores mínimos, de sua autoria, não somente explora a prosa poética, mas também recursos da poesia, como a musicalidade; frases, orações e linhas que simulam versos; a disposição das palavras na página a formarem (sugestões de) imagens, entre outros. Você é leitor de poesia? Qual a importância da leitura de poesia para o escritor de prosa ficcional?

João Anzanello Carrascoza: Sim, Rogers, você tem toda razão e sensível percepção, como demonstra em sua pergunta – eu sou de fato leitor cotidiano de poesia desde menino, quando aprendi a ler. Lembro-me do alumbramento que me causou, naquela época, o contato com poemas tanto dos românticos, como Gonçalves Dias e Castro Alves, quanto dos modernistas, como Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira. Escritor que atua o tempo inteiro engendrando narrativas, sinto imenso contentamento ao entrar nesse outro universo da palavra, mais afeito à filosofia, à metafísica, à jornada interior – daí porque eu sempre misture essas duas águas literárias. São linhagens que me bordam, enquanto eu as abordo para refluir minhas histórias. 

Sinvaldo Júnior: Há muitos anos, em 2007, quando era professor do Ensino Fundamental, eu indiquei a leitura do seu livro Ladrões de histórias. É um romance infantil (infanto-juvenil?) que, a partir de um mapa de leitura inicial e de palavras destacadas nos finais de cada capítulo, o leitor vai escolhendo o caminho que quer seguir. Sendo assim, há várias histórias dentro de uma. É a polissemia da literatura elevada à enésima potência. Lembro que, àquela época, Ladrões de histórias foi uma unanimidade entre os alunos da 6ª série (hoje 7º ano). Tendo em vista esse romance, qual o segredo para a escrita de literatura para crianças e pré-adolescentes?


João Anzanello Carrascoza: Muito grato pela pergunta, Sinvaldo, e pela alegria que você me proporciona me contando a experiência com seus alunos gerada pelos Ladrões de histórias, obra interativa que propõe variadas leituras em função da ordem dos capítulos que o leitor escolhe, numa espécie de O jogo da amarelinha, o que, consequentemente, leva-o a atravessar trechos da narrativa, como o desfiladeiro das trevas ou a cachoeira de luz, que não será conhecido por outro leitor. Inclusive, se você bem se lembra, os caminhos percorridos levam a finais distintos. Eu não vejo diferenciação entre narrativas destinadas a um público jovem ou aos adultos – como em Alice no país das maravilhas, as portas dos livros estão abertas para o leitor atravessar apenas a divisa ou ir mais ao fundo do continente ficcional. A chave, ou a dimensão da abertura para a fruição da história, está lastro da leitura e não na intenção da escrita.

 

Milton Rezende: Queria que você falasse um pouco sobre a criação literária, a publicação de livros e o feedback recebido pelo público leitor, geralmente muito pequeno, disperso e diluído. Isso chega a comprometer o trabalho do escritor no que diz respeito à motivação criadora?

João Anzanello Carrascoza:  Penso que as manifestações, seja de contraposição ou de encantamento, advindas do público em geral e da crítica literária específica, têm alguma repercussão na forma como o escritor concebe a sua própria obra e investe em novas perspectivas. No meu caso, todas elas são menores do que a minha motivação íntima, a única capaz de me instar ao desafio diário, e sobretudo à paixão, de continuar escrevendo.  

  

Daniel Lopes: Cortázar afirmou que, enquanto o romance é como uma luta de boxe e ganha por pontos, o conto é um nocaute. Você é um escritor que transita pelos dois gêneros? Como é o processo de passar de um gênero ao outro? Você sente alguma dificuldade? Há um período difícil de adaptação da escrita?

João Anzanello Carrascoza: As histórias longas exigem, como na metáfora de Cortázar, maior extensão e sucessão de episódios (rounds), o que exige certa musculatura narrativa, a qual o conto dispensa. Por sua vez, o conto obriga a uma prática narrativa mais afeita à compreensão entre o início e o fim da trama – ou seja, um investimento preparatório para o desfecho –, o que não acontece com o romance, condicionado pelas ondas compridas do “durante”.  

Daniel Lopes: Normalmente, a narrativa aborda um conteúdo do passado, ou, com menos frequência, do presente. Certa vez, li um conto seu no qual os verbos eram todos no futuro; como se no lugar da memória operasse a vidência. Percebi ali uma inovação formal que afetava também o conteúdo do texto. Qual é a relação entre forma e conteúdo no seu trabalho?

João Anzanello Carrascoza: Fico feliz e grato por esta observação, Daniel, que precede a sua questão propriamente dita, porque, ao construir minhas histórias, vivo buscando a forma que possa acolher com o máximo de aderência o conteúdo ficcional. É um objetivo que me pauta em especial nos últimos anos, desde Dias raros e Amores mínimos, e que se explicita mais largamente em Aos 7 e aos 40, Aquela água toda e Caderno de um ausente. A história pode ser contada de diferentes maneiras, mas “descobrir” aquela que potencializa o seu enredo é um dos mistérios que me provocam na condição de ficcionista.


Márcia Barbieri: Conto para uma só voz foi escrito em uma residência literária na Índia, um lugar que para nós soa bem distante e exótico. Gostaria que falasse como o lugar te influenciou na escrita, já que o tema do livro, a relação entre pai e filho, é universal. 

João Anzanello Carrascoza: Sim, Márcia, a experiência na Sangam House, casa de escritores edificada na fazenda-sede de um grupo de dança tradicional indiana, foi insólita e essencial para criação desta obra. A Índia é um país populoso e, mesmo quando eu caminhava sozinho pelos campos, para ir até a cidade mais próxima, encontrava gente e mais gente em meio à paisagem, a pé, em bicicleta, moto, riquixá. E, então, eu pensava: “quem liga para a dor de cada um, senão eles próprios?". Ao mesmo tempo, apegava-me à certeza de que a morte de um homem, qualquer que seja, leva também um pouco da vida de cada um de nós.

Márcia Barbieri: Maria Gabriela llansol diz sobre seus vários livros: “O texto que ando a escrever vai para trinta e cinco anos, começou por ser pequenas narrativas de estranheza e identificou-se, em seguida, com a sequência das cenas fulgor do ‘entresser’. Quis agora olhá-lo do ponto de vista do luar libidinal”. Acho fascinante essa visão da repetição, a sensação de um livro infinito. Como você definiria Conto para uma só voz? É um livro novo ou o mesmo livro?

João Anzanello Carrascoza: Bonito e delicado o posicionamento desta autora. No caso do Conto para uma só voz, creio que é um capítulo novo do único livro que me coube contar nesta existência – o que, para mim, não deixou de ser um estímulo poderoso e uma experiência única. Para o leitor, espero que ele reconheça nessa nova seiva a mesma raiz literária de minhas obras anteriores.