22 de jul. de 2020

Entre gestos e pequenos absurdos

Por Milton Rezende


Interstícios da vida

Deixar de ser cúmplice da vida

de outros que em mim personificam

a parcela da culpa que subtraio

do erro coletivo e meu, individualizado.

 

Obscurecer o reflexo do sofrimento

de homens que não vejo em presença,

mas que em espécie me julgam digno

de vê-los (como testemunha da morte

sem remissão de si) em que se abrigam.

 

A desvisão do homem como forma de se

desviar do mundo, numa covardia anônima

de se cegar para o que há de recíproco

no duplo ato de existir e ser responsável

por esta morte latente, usada como escudo.

 

Mantendo a essência que não explico

mas sei que existe onde deixo

de existir para ser parceiro da vida,

criação simbólica do gesto de um deus

não conclusivo, que se deu por satisfeito

em seu cansaço.

  

Na prisão

Estou sufocado entre homens

e as circunstâncias indicam

que eles também estão presos

por um fio de desespero

à necessidade de convívio.

 

Estou preso a gestos e sorrisos

alheios que nada me dizem,

mas preciso deles e os procuro

para sobreviver a esse tédio

que me aniquila em mim mesmo.

 

Estou inerte como um poste elétrico

a quem se atribui energia a energia

que se transmite por uma fonte exterior.

E que eu, portanto, não tenho energia

e minha existência é nula se isolada

do processo humano que me condiciona à vida.

 

Estou cansado destas noites

sem memória e sem projetos,

a não ser a própria projeção

que delas fazemos antes que venham

com sua carga de sonhos recusados.

 

Estou farto desta minha vida

tão inutilmente subdividida

entre pequenos absurdos e gestos

que sepultam de mim justamente

aquilo que era eu para além

do fracasso a que me sei condenado. 


Do livro Areia (À fragmentação da pedra) (João Scortecci Editora, 1989). Pedidos de exemplares pelo e-mail coisasprobule@gmail.com. Preço: R$ 20,00 + R$ 10,00 frete = R$ 30,00.