Por Milton Rezende
Interstícios da vida
Deixar de ser cúmplice da vida
de outros que em mim personificam
a parcela da culpa que subtraio
do erro coletivo e meu, individualizado.
Obscurecer o reflexo do sofrimento
de homens que não vejo em presença,
mas que em espécie me julgam digno
de vê-los (como testemunha da morte
sem remissão de si) em que se abrigam.
A desvisão do homem como forma de se
desviar do mundo, numa covardia anônima
de se cegar para o que há de recíproco
no duplo ato de existir e ser responsável
por esta morte latente, usada como escudo.
Mantendo a essência que não explico
mas sei que existe onde deixo
de existir para ser parceiro da vida,
criação simbólica do gesto de um deus
não conclusivo, que se deu por satisfeito
em seu cansaço.
Na prisão
Estou sufocado entre homens
e as circunstâncias indicam
que eles também estão presos
por um fio de desespero
à necessidade de convívio.
Estou preso a gestos e sorrisos
alheios que nada me dizem,
mas preciso deles e os procuro
para sobreviver a esse tédio
que me aniquila em mim mesmo.
Estou inerte como um poste elétrico
a quem se atribui energia a energia
que se transmite por uma fonte exterior.
E que eu, portanto, não tenho energia
e minha existência é nula se isolada
do processo humano que me condiciona à vida.
Estou cansado destas noites
sem memória e sem projetos,
a não ser a própria projeção
que delas fazemos antes que venham
com sua carga de sonhos recusados.
Estou farto desta minha vida
tão inutilmente subdividida
entre pequenos absurdos e gestos
que sepultam de mim justamente
aquilo que era eu para além
do fracasso a que me sei condenado.
Do livro Areia (À fragmentação da pedra) (João Scortecci Editora, 1989). Pedidos de exemplares pelo e-mail coisasprobule@gmail.com. Preço: R$ 20,00 + R$ 10,00 frete = R$ 30,00.