23 de jul. de 2020

Como gato que fica sem dono

Por Cláudio B. Carlos

Não sabia da morte nem de seus significados. Até gostava da palavra e encantava-me a triste elegância ou a elegante tristeza das mulheres de negro, chorosas nos velórios. De certo, só que era alguma coisa de muito grave. Mas era tão distante de mim, que correndo pelos campos com os guaipecas, ou comendo furtivas guabirobas entre um brincar e outro, era impossível imaginá-la ou sabê-la. Chegou-me silente como um passar de flanela em tampo de vidro, e com ares de sorro levou-me o amigo deitado em palavra de cerejeira. Também gostava desta: caixão. Talvez por não saber que nela pudesse caber o gigante que carregou-me às costas um dia. Ali, no centro da sala, como num passe de mágica, em frente ao féretro me branquearam os cabelos, como se tivesse dormido à geada. Petrifiquei-me por dentro e entendi que assim como a saudade, que também é palavra bonita, a morte, em um dos significados que traz como disfarce que escolhe à toa em um leque de opções, é guri que fica sem pai, como gato sem dono, assim, sem pernas pra se enroscar. 

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Cláudio B. Carlos é poeta e contista. Nascido em 22 de janeiro de 1971, em São Sepé-RS. Tem diversos livros publicados. Coordena o Grupo de Escritores O Bodoque. Atua no mercado literário como editor, preparador e revisor de textos. Vive em Cachoeira do Sul-RS. É editor da Editora Coralina (www.editoracoralina.com.br) e da Saraquá Edições (www.saraquaedicoes.com). Apresenta o podcast Balaio de Letras (www.anchor.fm/claudiobcarlos).