5 de set. de 2012

O círculo


Por Cláudio B. Carlos

FOI NUM SETEMBRO que decidi que não gostava mais da minha mãe. Das suas mãos lambuzadas de comer galinha com molho. Do som nojento que ela fazia ao chupar os ossos e depois os dedos. Das lambidas que ela dava no garfo e depois na faca, até deixá-los brilhando. Daquele passar de língua ao redor dos lábios depois da refeição, e daquele mostrar de dentadura postiça frouxa dentro da boca. Do engasgar com o pavio de mandioca, regurgitando como um cusco, fazendo o som que os cuscos fazem quando estão engasgados. Se eu tivesse uma namorada (e nunca a tive), e se ela um dia comesse com a gente, eu acho que me enfiaria pela fresta que divide ao meio a mesa de armar e ficaria embaixo dela, escondido sob a toalha sempre xadrez, tamanha a vergonha.

OU ENTÃO:

Avançaria por cima da mesa, por cima da comida, e com toda a força que conseguisse arranjar apertaria o pescoço da mãe com as duas mãos até que ela silenciasse de uma vez por todas.

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Foi num setembro que decidi que não gostava mais da minha mãe. Dos peidos no quarto ao lado cada vez que sentava no penico pra mijar, de madrugada. E dos gemidos. Era sempre uma dor diferente. E ela gostava das dores, das doenças e dos choros. E a culpa de tudo era sempre minha. Foi quando, por pura solidão, quis andar pela casa de mãos dadas com ela, e ela me disse que menino não deveria namorar a mãe. Foi ali. Com medo e com vergonha nunca mais a toquei. Nem me deixei tocar. De onde ela haveria de ter tirado tais imundícies? Naquela noite abafei o choro sob o cobertor e acordei resolvido a envelhecer o mais rápido possível para sair do círculo que se fechava em volta de mim e que me apertava e que me sufocava… Agora ela está aqui na minha frente. Na minha casa. 95 anos. Só nós dois. Nenhuma testemunha. Acabei de servir galinha com molho. O prato na frente dela libera uma leve fumaça que logo se desmancha no ar. Eu não vou comer, nem conseguiria. Estou sentado bem na frente dela. Tão perto que se esticasse as pernas, sob a mesa, tocaria seus pés. Não o faço. Estou calmo. Vou assisti-la comer e se lambuzar até os cotovelos. Vou vê-la chupar as carnes, os ossos, e depois os dedos. Ela lamberá o garfo, e depois a faca. Manterei a calma e antes que ela intente o passar de língua ao redor dos lábios e antes que mostre a dentadura frouxa a sufocarei. Fecharei as mãos ao redor do pescoço dela com toda a força que arranjar em mim.

Cláudio B. Carlos (CC) é poeta da nulidade e filósofo do nada. Nasceu em 22 de janeiro de 1971, em São Sepé, RS. Tem diversos livros publicados. Coordena o Grupo de Escritores O Bodoque. Vive em Belo Horizonte, MG. É editor do site Dona Zica tá braba.