Por Marcia Barbieri
Às
vezes, me sento na estrada, fico perseguindo o sol, como se minha vida
dependesse urgentemente desse ato boçal, abro as pernas e sinto o vento e a
areia me assediando, ali mesmo solto um mijo ocre, quente, depois no lugar
daquele minúsculo lago artificial, cutuco a terra e como as raízes novas, é
como degustar o sabor das suas origens, é como descobrir o gosto que terão seus
descendentes, é como destrinchar seres primitivos pelo umbigo, é como desterrar
carcaças ancestrais. Toco nos chifres ocos dos antílopes e os imagino rasgando
o útero leitoso do universo numa cópula bruta e universal. Comendo terra me
acostumo com a cova. A insipidez do nada. Quando morrer meus ossos descansarão em paz. Morto de verdade
não faz peso na terra. Seus ossos viram poeira pó de mico feitiço em tacho de
bruxa. Perguntei ao Gaguinho porque ele seguia aquele homem louco, barbudo e
com fucinho largo, de muitos amigos, cheirando o traseiro de todo homem. Sei
não, não sou de fazer muita pergunta. Repara não, sou calado, lábio selado,
casco de cavalo na língua. Falasse mais a vida tinha encurtado as pernas. Imagine
só uma vida de pernas curtas, tão engraçado. A vida inteira passei trabalhando
e seguindo homem bronco. Escarrador de palavra no chão. Gente que soca discurso
com pilão, come cabeça de porco, língua de boi. Verbo rasgado, curto. Pouca
polidez na carranca. Criando e adubando desafetos só por medo de desaguar. Fingindo
que choro é erva daninha. Homem desaguando é maricas. Tapeio minha cara e ela é
dura feito cara de burro arredio. Dura feito escultura de madeira, mas madeira
quando infesta de cupim fica fofa, desmancha com um sopro, a minha danou a
desmanchar. Perdi o cabresto tarde, por muito tempo andei olhando o mundo sem
viés. Acho bonito homem que olha o mundo de canto de olhos, de través e assim
mesmo enxerga e assim mesmo relata história comprida, põe palavra na boca de
gente muda, não conheço personagem de contador que também não seja um pouco
contador ou mentiroso. Gente de faz de conta tem mais língua e saliva que homem
de carne e osso. Corre mundo, vagueia debaixo da lua. Tem menos dente, mais
ouro na boca. Mais brio nas carcaças. E tem também mais coragem, monta touro
bravo, atira em malandro, desobedece matador, despista da bala. E eu catando
praga da plantação de arroz pra ter o que comer. Amarrando tomate pra não
tombar - é triste ver planta morta porque não aguentou o peso do próprio fruto,
é como uma mulher que morre parindo filho - abrindo vala pra água escorrer, fugindo
do guizo da cascavel, tomando pinga pra curar as palavras que foram apodrecendo
lá dentro do estomago. Pinga cura tudo, até gripe brava. Às vezes penso que sou
só ventríloquo. Palavra bonita... Conselheiro me explicou o que era e achei que
sou um pouco isso. Um ventríloquo... oco por natureza. Por muito tempo só
aprendi a ser telegrama, a fazer epitáfio, porque era meu papel, anunciava a morte
dos parentes pra outros parentes, telefone nunca existiu aqui. Não queria ser assim,
queria saber dar consolo. Na minha boca palavra tem peso de pai furioso,
varinha de marmelo abrindo vergões vergonha da pele. Só sabia mesmo era dar
notícia ruim de jeito calmo, por isso me chamavam. A calma era por causa da
gagueira, a ruindade demorava a escorregar pela garganta. Os olhos enchiam
d’água. Começava a falar da diferença dos pastos e da grama verde, do silêncio
e do nó forte que só morto sabe fazer, dos mortos que viram santos, fazem
milagres, das almas penadas que vagam felizes poraí. Quando me avistavam ao
longe, acendiam velas, preparavam o leito, o banho, a roupa fúnebre, a bebida
pra tomar o defunto. Tristes das famílias que não podem preparar e enterrar
seus mortos. Palavra saia fraca, parecia dedo mindinho, restinho de leite em
teta de vaca anêmica. E olha que dentro da minha cabeça os sentimentos eram
muitos, acho que todos eles viraram coágulos, feridas de joelho. Agora tenho
que segurar as unhas pra não rasgar com muita força a casquinha e deixar o
negócio sangrar. Acho que é herança de pai. Eu abraçava ele e o seu peito era
como de um gorila. Olhava pro seu rosto e ficava tão fácil entender a tal da
evolução. Comecei a duvidar de Deus, não por rebeldia, mais por constatação. Aquela
que diz que não foi Adão e Eva, mas fomos levantando e virando homem. Meu pai
não tinha terminado, estava no meio do caminho e deram alma de homem pra ele. Seu
rosto era igualzinho de um macaco. Suas mãos grandes pareciam cascas de árvore
centenária. Tentei ser menos animal que ele. Mesmo assim, conto em um dedo
quantas vezes falei pra Aninha do meu bem querer. Me arrependo tanto tanto! E
ela tão mais alta do que eu, difícil de alcançar, difícil de chegar até meus
ouvidos os seus grunhidos. Por um tempo achei que talvez fosse surda, por isso
falava tão mal. Não era isso, era desespero, era angústia porque mulher nunca
tinha vez. Era café com leite. Um dia, brava, Aninha gritou que queria bem ser
puta, deveria ter nascido já puta, porque puta falava, gemia. Puta pensava, era
boa na aritmética, fazia conta pra não ser roubada, cortava à faca homem
folgado. Mulher era que nem cachorro, só não tinha rabo por falta de destreza
de Deus, tinha que viver lambendo a bunda dos homens. Eu ia dizer que não era
assim, ela se virou, começou a mexer o doce no tacho grande e eu me esqueci de
discordar. Meu espírito era de pouco argumento. Ela também falava tão pouco,
sempre bordando no pano o mesmo morango. E nunca terminava. Chegava a me dar
enjoo tanta fartura. Queria plantar morangos, mas o tempo era ruim e os
morangos mofavam e morangos mofados traziam má sorte. Nos seus panos os
morangos eram vivos e carnudos e não morriam. Eram feito plantação bem cuidada,
plantio de rico. Um dia, por engano, tentei morder, arrancar a polpa. Aninha
gritou, disse que eu estava ficando louco, querendo comer ilusão. E que por
certo era a cachaça que tinha comido meu juízo. Coitada, não sabia que a
fantasia é que faz a gente mais feliz. Faz a gente grande, vistoso, carne
secando ao sol. Todos os homens que não acreditavam estão mortos agora e nem o
odor de sua carne chega até nossas narinas. É preciso um pouco de mentira pra
resistir. Todo suicida é um religioso esperando o perdão de Deus. E Deus está
ocupado com outras coisas, como catar piolho de cabelo de criança. Minha cabeça
queria mas minha cabeça dura não conhecia frase feita. Como sou feliz agora que
conheço todas as frases de pára-choque de caminhão. Minha mãezinha falava que
queria casar com caminhoneiro porque ele ia contar sobre as outras verdades que
ela não conhecia, ia trazer lembrança de cidade santa, ia trazer água do mar em
garrafa de tubaína. Se tivesse casado
com caminhoneiro todos os dias iria esperar na porta um novo homem, porque
quando o homem sai de sua terra e conhece terra estrangeira, ele já é outro. E
ela ajudaria ele a pintar as frases e apagar e escrever outra. Mãezinha não
conheceu marido, mas se deitou com muito caminhoneiro. Ela dizia que se a gente
não pode realizar um sonho inteiro, tem que se contentar com meio sonho. Também
se deitou com um pescador. Ele colocou o apelido dela no barco, mas o barco
logo naufragou. Ela nunca criou raízes, no entanto, ela não se entregou, não
soluçou, ela entendia de cartografia e sabia que gente parada num lugar só cria
micoses e as micoses distraiam sua solidão.