Por Marcia Barbieri
A um homem de humilde nascimento exijo que não
alimente a desumanidade de não poder apresentar-se no palácio do rei... (Kierkegaard)
A
literatura da periferia é equivalente a um homem desprovido de vísceras e de sombra,
dormindo e escarrando na sarjeta da literatura de alta classe. As obras de
autores periféricos são colocadas no saco escrotal da arte. Para os elitistas
não é necessário discutir conceitos estéticos na periferia, ou melhor, obras da
classe baixa e da classe alta são analisadas de formas diferentes, como se
fossem duas categorias distintas. É indiferente rimar flor com dor, porque para
a classe abastada é tudo muito “lindinho”, “os marginais” fazem poesia depois
de arrotar frango e farofa, no entanto, é razoável que sua literatura não
cheire bem.
Não
tem que haver paternalismo na arte, não temos que inventar uma literatura
palatável e que comungue com as deficiências da periferia. Uma sociedade omissa
e deficiente não pode exigir como devolutiva uma literatura igualmente omissa e
deficiente. Uma literatura digerível não pode ser chamada de arte, a função do
estético é deslocar, descentralizar, não é curar feridas, ao contrário, é
romper ossos e deixar à mostra as fraturas expostas do homem. Entretanto, estar
na no espaço físico da periferia não significa fazer uma literatura de boca de lixo, uma literatura
menor.
Os
artistas marginais ficam dentro do seu grande aquário do desespero, exibindo-se
como peixes ornamentais e os ricos respiram aliviados porque os pobres estão enclausurados
em saraus falando seu poeminha de merda e mantendo a cabeça ocupada. Não se
pode avaliar a escrita do rico com os mesmos aparelhos estéticos, afinal, o
literato pobre tem uma “cultura carente”, uma cultura lacunar.
Podemos
nos perguntar, mas afinal, a literatura da periferia não é comentada, é
ignorada como manifestação artística? Claro que não, ela existe e a condição
para sua existência é que o escritor assuma seu papel de artista engajado e
coloque na sua coleirinha a identificação: periferia, não se misture e cumpra
seu papel de levar literatura medíocre à sociedade doente que o gerou. A
periferia pode fazer arte, desde que aceite servir o sopão. Isso não é arte, é
obra social.
Às vezes, tenho a
impressão que ainda estamos no século XIX, no qual o homem inculto (como
definir o que é culto?) é impedido de fazer arte. Em um dos seus ensaios Henry
James diz que o escritor Besant não acreditava que um escritor de classe média baixa
pudesse e tivesse permissão para escrever sobre classes abastadas. Tal afirmação
nos parece absurda e descabida, no entanto, embora hoje se pregue
hipocritamente igualdade, o artista pobre precisa se fechar no seu quartinho de empregada e escrever apenas sobre essa ótica, ele não pode adentrar a casa
grande, sua cultura nefasta não permite que ele entenda o universo vasto e
rococó do homem requintado (quem recolhe a merda não pode falar de quem as
cagou), ele está fadado a escrever raps de protesto.
É preciso entender que a
arte é mais do que acúmulo de saberes, se ela fosse apenas isso não passaria de
pastiche. A arte também está nas deficiências, nas brechas, nas fendas, nas
rachaduras, nas ignorâncias, nos deslocamentos, ela se manifesta mais no sentir
do que no saber, sendo assim, podemos dizer que a literatura de qualquer um é
legítima. Para Deleuze: “Ao escrevermos, como evitar
que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É
necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na
extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber
e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos
determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois
ou, antes, torná-la impossível.”
A crítica desse texto não se
restringe à classe alta que enxerga o homem pobre com olhos miúdos e míopes,
ela se estende também aos artistas que compram e se aproveitam desse discurso,
se autotitulam escritores do povo e realizam saraus, onde se escuta e se vê de
tudo, menos arte. Os saraus são enxergados como entretenimento, novela das oito
e não com a seriedade e pulsão que a arte exige.
Deixo claro também que a crítica não se refere aos que realizam com
verdade e convicção uma literatura que sensibilize a massa. Assim como
esclareço que não sou adepta de uma literatura inalcançável e elitista. A minha
ideologia é uma literatura universal e paradoxalmente do não-lugar, desfocada,
que não traga segregações, divisórias ou amarras, uma literatura do
não-aparthaid. Uma literatura que exponha o avesso do homem e na qual todo
homem, por mais mirrado que aparente, possa gerar sombra.