13 de set. de 2012

Escritores marginais ou marginais escritores? Malagueta # 30


Por Marcia Barbieri

A um homem de humilde nascimento exijo que não alimente a desumanidade de não poder apresentar-se no palácio do rei... (Kierkegaard)

A literatura da periferia é equivalente a um homem desprovido de vísceras e de sombra, dormindo e escarrando na sarjeta da literatura de alta classe. As obras de autores periféricos são colocadas no saco escrotal da arte. Para os elitistas não é necessário discutir conceitos estéticos na periferia, ou melhor, obras da classe baixa e da classe alta são analisadas de formas diferentes, como se fossem duas categorias distintas. É indiferente rimar flor com dor, porque para a classe abastada é tudo muito “lindinho”, “os marginais” fazem poesia depois de arrotar frango e farofa, no entanto, é razoável que sua literatura não cheire bem.
Não tem que haver paternalismo na arte, não temos que inventar uma literatura palatável e que comungue com as deficiências da periferia. Uma sociedade omissa e deficiente não pode exigir como devolutiva uma literatura igualmente omissa e deficiente. Uma literatura digerível não pode ser chamada de arte, a função do estético é deslocar, descentralizar, não é curar feridas, ao contrário, é romper ossos e deixar à mostra as fraturas expostas do homem. Entretanto, estar na no espaço físico da periferia não significa fazer uma literatura de boca de lixo, uma literatura menor.
Os artistas marginais ficam dentro do seu grande aquário do desespero, exibindo-se como peixes ornamentais e os ricos respiram aliviados porque os pobres estão enclausurados em saraus falando seu poeminha de merda e mantendo a cabeça ocupada. Não se pode avaliar a escrita do rico com os mesmos aparelhos estéticos, afinal, o literato pobre tem uma “cultura carente”, uma cultura lacunar.
Podemos nos perguntar, mas afinal, a literatura da periferia não é comentada, é ignorada como manifestação artística? Claro que não, ela existe e a condição para sua existência é que o escritor assuma seu papel de artista engajado e coloque na sua coleirinha a identificação: periferia, não se misture e cumpra seu papel de levar literatura medíocre à sociedade doente que o gerou. A periferia pode fazer arte, desde que aceite servir o sopão. Isso não é arte, é obra social.
Às vezes, tenho a impressão que ainda estamos no século XIX, no qual o homem inculto (como definir o que é culto?) é impedido de fazer arte. Em um dos seus ensaios Henry James diz que o escritor Besant não acreditava que um escritor de classe média baixa pudesse e tivesse permissão para escrever sobre classes abastadas. Tal afirmação nos parece absurda e descabida, no entanto, embora hoje se pregue hipocritamente igualdade, o artista pobre precisa se fechar no seu quartinho de empregada e escrever apenas sobre essa ótica, ele não pode adentrar a casa grande, sua cultura nefasta não permite que ele entenda o universo vasto e rococó do homem requintado (quem recolhe a merda não pode falar de quem as cagou), ele está fadado a escrever raps de protesto.
É preciso entender que a arte é mais do que acúmulo de saberes, se ela fosse apenas isso não passaria de pastiche. A arte também está nas deficiências, nas brechas, nas fendas, nas rachaduras, nas ignorâncias, nos deslocamentos, ela se manifesta mais no sentir do que no saber, sendo assim, podemos dizer que a literatura de qualquer um é legítima. Para Deleuze: “Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível.”
A crítica desse texto não se restringe à classe alta que enxerga o homem pobre com olhos miúdos e míopes, ela se estende também aos artistas que compram e se aproveitam desse discurso, se autotitulam escritores do povo e realizam saraus, onde se escuta e se vê de tudo, menos arte. Os saraus são enxergados como entretenimento, novela das oito e não com a seriedade e pulsão que a arte exige.
Deixo claro também que a crítica não se refere aos que realizam com verdade e convicção uma literatura que sensibilize a massa. Assim como esclareço que não sou adepta de uma literatura inalcançável e elitista. A minha ideologia é uma literatura universal e paradoxalmente do não-lugar, desfocada, que não traga segregações, divisórias ou amarras, uma literatura do não-aparthaid. Uma literatura que exponha o avesso do homem e na qual todo homem, por mais mirrado que aparente, possa gerar sombra.