6 de jul. de 2012

A puta - V

Por Marcia Barbieri

Antes da guerra, era tudo resolvido em clínicas caras para os ricos ou clandestinas para os pobres. No entanto, hoje voltamos ao misticismo, hoje minha mãe é uma das pessoas mais importantes do bando. Ela faz papel de parteira e médica, expulsa os demônios dos corpos. Inventa remédios com as ervas daninhas. A doença também traz o germe da cura. As pessoas que sobraram da guerra não eram as mais cultas, por isso a dificuldade em conseguirmos retomar toda a ciência que foi perdida. Mas sabíamos de uma coisa importante, as coisas nascem, crescem e morrem. Nossa antiga civilização entrou em declínio e se extinguiu, tivemos que recomeçar do zero. Logo percebi que para as putas não tinha mudado muita coisa. Nosso trabalho continuava o mesmo, com a diferença que agora não tínhamos mais nenhuma proteção contra as doenças do sexo. No entanto, passei muito tempo sendo comida sem sentir nenhum desconforto. Apenas a herpes recorrente, mas eu já trazia ela na boca antes do extermínio. Perdi a audição de um dos ouvidos depois da guerra. O tiro percorreu quilômetros e depois se aquietou, me esperando em emboscada. A bala passou sorrateira, atravessou meu crânio e está perdida no meio ziguezagueante do meu cérebro. Escuto dedos mortos sobre a madeira porosa, ainda decifro código morse. Ninguém usa isso, eu sei. Não serve pra nada, quem se importa com as inutilidades que carrego? O supérfluo engana o sofrimento. As manchas brancas espalhadas no seio do nada. Procuro um objeto inominável. Ele deve estar escondido nos buracos mais ínfimos. Ele deve suspeitar que estou à espreita. Ele se esconde nas estrias do útero. Passo a mão no meio das coxas – procuro um objeto inominável - subo até a virilha, em volta do prazer os pelos voltaram a crescer, grossos, pretos, sujos, emaranhados.  Alguns homens têm tara por vaginas peludas. Tenho deixado a minha por conta do tempo. O tamanho dos pelos me servem de calendário. As mães e as putas sabem de tudo, são onipresentes como o diabo. Conhecem cada centímetro imundo do homem e ele não as surpreende. Todas as suas unhas encravadas, os olhos de peixe na sola do pé vigiando os seus passos mais sórdidos. Eles abrem seus corações e estes fedem como esgoto a céu aberto. Teria pena de meu inimigo se ele tivesse que partilhar a mesa com um homem. Tenho pena das esposas que se consideram melhores do que as putas. Tenho pena do homem que se considera melhor do que o bicho. Nunca cobrei barato pra chupar um pau. E já fui chupada sem pagar nada. Hoje sou uma das putas mais ricas desse vilarejo. Sempre cobrei a preço de ouro. Buceta dourada, sou conhecida assim pelas redondezas e pelo cacoete nas partes baixas. Posso te mostrar depois. Lá naquele cantinho. Sou discreta, seus superiores não saberão. É só eu abrir as pernas. Se quiser subo a saia aqui mesmo. A saia foi a melhor invenção da humanidade. Quer que eu me toque pra você? Você verá, vai se sentir até pequeno. Já engoli muito homem valente com isso aqui. Você gosta de mulher? Tem bigode de quem gosta. Se quiser pode me pegar por trás. Já dormi com muito viado. Ninguém está contente com sua terra, todos querem ser protagonistas, no entanto, não passam de coadjuvantes. Quantas vezes eu mesma me engasguei com torrões de terra estrangeira, tive viagens alucinantes com cogumelos de outros pastos. Também já dormi com muitos geógrafos, eles percorrem cada canto do corpo calculando escalas. Eu os ajudava com as réguas e os metros, calculava os tremores que não ocorriam, furtava água dos açudes. Não estou me desviando do assunto, é que todo discurso é vago e sem fronteira, geografia sinuosa. Nunca descobri resposta quando fiz pergunta, as coisas foram se colocando no lugar depois, como um tremor acomodando placas tectônicas, com o vagar que as coisas costumam ter, com o esquecimento bonito e brutal que vem com os temporais. Com a podridão das sementes que morrem alagadas depois das chuvas intensas.