Poema-fogo para Herberto Helder
Impossível ver seu rosto de homem
pentecostes na voz em meio à sarça
ardente
seiva bruta na saliva que irriga
lavouras
de poemas e ostras e algas
do mar da Madeira. Ilha de mistérios
onda a levedar no pão de cada lua
ofício cantante em harpa de ouro e
trigo
louros ressequidos pelo sol selvagem
de seu autoexílio.
Impossível ver seu rosto em bronze
diamante polido pela mão de um anjo
a gritar: – Ó zona de baixeza humana!
Mítico maldito em estado selvagem
o olhar varado pela flecha de prata
do menino-bardo;
cordão umbilical atado a tudo
que o tempo lavrou em vil caligrafia:
fogueira e monturo no buço da noite
cabelos de plantas descendo os adobes
ressaibos de dores nos poros do amor
explosão do átimo de Deus
lavas de dragão incinerando a pátina
vulcão regurgitando a própria entranha
escarrando pro céu o cuspe de sua alma.
Impossível não ler Herberto em chamas.
Abstrato em luz e medo
O medo é a alma dizendo onde dói
pássaro conduzindo léguas
sob asas feridas.
É grito de Munch sangrando a moldura
expressão da face à beira-morte
quando um anjo anuncia o delírio.
É o temor do cântaro ao desuso
jardins plenos de sede e gerânios
cardumes de espectros
pescando crendices nos rios da noite.
Há mel e fé na colmeia do medo
e os anjos terríveis de Rilke
pintam de ferrugem cada luz e riso;
semeiam gerânios sobre cada grito.
Mea culpa ou profissão de fé
Ao poeta Francisco Carvalho
Semear poeiras e andrajos de esperas
dissecar os ossos das metáforas
acender espantalhos no amarelo das
espigas.
Decantar o silêncio que sustenta o cais
ostentar um colar de metonímias
despir a voz da louca, cuja febre
anuncia
um evangelho apócrifo.
Caminhar sob pedras como por milagre
ouvir a foz rouca dos rios da infância
borrifar no azul as flores do
arco-íris.
Pintar um verão vazio de andorinhas
se encharcar de sol e devaneios
hastear um lenço sujo de saudade
ajustar os ponteiros na cópula dos
pardais.