Por Ricardo Novais
"Em comemoração aos trinta anos da ‘Tragédia do
Sarrià’".
O apagar das luzes no estádio
é a sentença para as redações esportivas. Paloma, dezenove anos
completos, estagiária do jornal Arte da Bola, precisava de uma pauta que
efetivasse seu contrato na empresa. Não bastava entrevistar algum craque do momento
ou escrever um artigo sobre o Barcelona, tinha que ser diferente. O velho
jornalista do caderno de esportes, Carlos Nogueira, surgiu entre o burburinho
da redação e a salvou.
- Você tem que ir atrás do
Fagner, menina. Ele está passando por maus bocados; falido, quase na miséria...
Manchetona, hein: "Craque boêmio derrotado pela vida". Que tal?
- O senhor é engraçado, Seo
Carlos.
- Oh, minha filha! - exclamou
ele rindo. - Não quer decolar sua carreira?
Fagner, ex-jogador da
lendária Seleção de 82, metido a galã, entre jogadas memoráveis do esporte
bretão, torrou rios de dinheiro nos gramados do mundo com
sexo, carrões, sexo, festas, sexo e... sexo. Nunca existiu pecado. Todos
os garotos queriam ser Fagner nos anos oitenta, todas as meninas queriam dar
para Fagner nos anos oitenta.
Paloma percebeu que sua
chance era contar a vida do grande ídolo do passado, que caiu
no esquecimento colossal do presente e na miséria inapelável do
incerto futuro; coisas do vestiário eterno, ironia da vida pública. Mas
havia um problema: onde encontrar Fagner? Outra vez a raposa das redações lhe
entregou o mapa:
- Vá à Rua Paolo Rossi, nº
20; procure o Pestana.
O lugar era um pé sujo na periferia
de São Paulo. Pestana era um velho com a barba por fazer e cara de tarado,
conhecido também como “Buk da Copa” ou “Velho Paulista Safado”.
- Cinquenta reais só para
começar a falar, minha filha.
O bar tinha mesas e cadeiras
pintadas de um amarelo enferrujado, embora o balcão fosse de uma maciça
madeira marrom muito escura. A cerveja foi servida no balcão, em copo americano
não muito limpo.
- Vamos direto ao lance, meu;
digo, ao assunto; onde mora o Fagner?
- Aqui perto...
Paloma deu um gole na cerveja
gelada e bateu uma nota de cem reais na madeira maciça. Desculpe o trocadilho,
leitor, mas Pestana a pegou sem pestanejar, coçou a barba encardida e
sorriu mostrando todos os dentes podres:
- Venha!
Eles entraram no carro;
Paloma teve medo, mas dirigiu cinco ou seis quilômetros por uma avenida ilumina
apenas pelo farol do automóvel e da própria alma; Pestana, o velho “Buk
Paulista”, há muito já não tinha mais alma nenhuma. Primeiramente, casinhas com
tijolos baianos aparentes eram a paisagem, depois a coisa ficou pior;
vultos sem rostos por todas as esquinas. Numa ruela, Pestana mandou parar.
Paloma hesitou, Pestana ordenou com veemência:
- Desce, porra! Não queria
vim, meu? Desce logo dessa porra de carro. Desça!
Desceram ruela abaixo.
Depois, pé ante pé numa viela molhada pela garoa, chegaram numa casa velha,
embora grande e com ares de relíquia.
- É aqui. O homem mora aqui
com a mulher e o filho caçula. Acho que a primeira mulher dele morreu tem uns
vinte anos, essa deve ser já bem a quarta ou quinta... O homem gosta da coisa,
conheço bem... - ele gargalhou baixo. Um quarto de minuto depois, quis ir
embora.
- Espera... - Paloma disse
tentando segurá-lo.
- Espera porra nenhuma,
cazzo. Dá uma olhada em volta, minha filha, está cheio de neguinho querendo de
comer. Vamos embora logo, porra! Senão vou ali pegar o busão e te deixo aí para
o Paulão... Olha lá o Zelão também... Aposto que os caras querem te dar um
trato... - Vendo que a moça nem ouviu o que ele disse, Pestana fez uma
pequena pausa para respirar profundamente e esbravejou: - Porra! Você está
ouvindo, caralho? Esses negões ali, ó, minha filha, são zagueiros do Estrela
Vermelha, o maior time de várzea da cidade cheios dos maiores marginais,
os mais nojentos... Daqui a pouco eles vêm aqui cobrar a gente, cazzo! Vamos
embora logo, porra!
Assombrada pela situação,
Paloma chegou a seu apartamento na Vila Mariana e sorriu de nervoso: Que
matéria! Mas, ao mesmo tempo, pensou em como podia ter acontecido aquilo?
O grande Fagner... O cara foi um ídolo... Ídolo da Seleção... Porra, da
Se-le-ção! Instantaneamente, lembrou-se da frase dita entre boleiros: “A bola
pune”.
Em três meses, Paloma era
redatora-chefe do Arte da Bola e amante de Fagner. Todas as noites os dois se
encontravam no antigo Banespa e de lá iam ao motel das estrelas. A mulher de
Fagner desconfiava, mas sabia do gênio imponderável do marido.
- Vai sair, amor? –
perguntava Stella.
- Vou. Não me espere,
chegarei tarde.
Maria Stella não devia ter
ainda trinta anos de idade, mas já tinha vivido sua vida inteira. Em meados dos
anos noventa, ela foi tiete de Fagner quando ele retornou endinheirado dos
Emirados Árabes depois de vencer o campeonato local pelo time do Sheik Abdala do
Samba, apelido do cartola do clube que era fã do futebol brasileiro. No
regresso, Fagner jogou na Portuguesa de Desportos; e, aos trinta e cinco anos
ainda era um craque. Isto fez o Flamengo se interessar pela sua contratação,
mas no clube da Gávea, um bairro tão excêntrico, Fagner apenas encerrou
definitivamente a carreira.
O último jogo de Fagner foi
uma noite de gala. Ele não jogou. Entrou todo uniformizado, rubro-negro, e deu
uma gloriosa volta olímpica no velho Maracanã, templo sagrado, sendo ovacionado
por milhares de geraldinos e arquibaldos, conforme consta nos arquivos do Arte
da Bola.
Stella engravidou rápido, e
Fagner tinha muito respeito pela paternidade; princípio de família que o
domava. Pediu a mão de Stella, embora isto já fosse fora de moda, durante
uma festa em Petrópolis. Dizem que nesta festa havia coelhinhas da Playboy,
muito uísque de Asunción e anões pervertidos que saiam de grandes caixas
de papelão – sim, dona leitora, concordo; se existiu tal fato, foi a visão do
inferno...
Casaram-se no Rio, onde as
traições eram constantes; mas Stella deu um jeito de regressaram a São
Paulo, simulou um sequestro relâmpago nas sofisticadas ruas da Barra da Tijuca,
onde moravam à época. Fagner ficou com medo, malandro que é malandro respeita a
seriedade de homens maquinados.
Morando já na casa grande e
velha com ares de relíquia, no extremo sul da capital paulista, Stella
pensou que Fagner tinha pendurado as chuteiras boêmias, até que apareceu
Paloma. A coisa foi ficando séria, e ela percebeu que tinha que acabar com
aquilo logo, rápido e súbito; foi ter com o marido.
- Fagner, não ligo que você
tenha seus casinhos com essas maria-chuteiras, vagabundas, mas agora é
diferente... Temos que dar o golpe nesta vaca e nos livrarmos dela.
- Está louca, Stella?
Fagner gostava
espontaneamente de Paloma, quase que poderia até ter a amado. Tê-la. Amado. Ela
o fazia se sentir ídolo, ídolo vivo. Às vezes, leitor, recupera-se alguma vida
na vida dos outros. Tudo é o primeiro raio que gera o primeiro sopro de vida, o
resto é o resto, ou nada; embora, muita vez, o nada é toda a boa-venturança dada
por Deus. Mas deixemos de tanta firula que o jogo está duro e em
andamento; perdão pelo passe errado, companheiro leitor; tornemos
logo ao conto.
Paloma era esperta, embora
muito jovem. Quando percebeu que corria perigo, recorreu outra vez à velha raposa
paulistana, o insuperável Carlos Nogueira. Marcaram encontro às onze horas
e quarenta e cinco minutos da noite no galpão de armazém abandonado do centro
da cidade dos violentos. Assim que estacionou o carro na Alameda
Sarrià, avistou a tragédia. Tragédia do Sarrià. Nogueira a esperava; ao
entregá-lo uma grande bolsa de couro com duzentos mil reais dentro, consumou-se
a tragédia: Paloma recebeu três tiros de revólver, pelas costas, todos na nuca.
Peço-te desculpas, leitor
amigo e torcedor, não tenho como contar aqui detalhes dos dedos que apertaram o
gatilho do maléfico revólver; também eu tenho medo das tragédias e zelo pelo
time da vida contra a morte anunciada. Mas, ora, não é tão difícil assim
imaginar como a jovem Paloma morreu e como deixaram o seu corpo desfalecido
jogado no pátio do armazém às ratazanas. Digo apenas que não foi o jornalista
quem atirou nela porque os que escrevem não sujam as mãos com pólvora, e em
verdade a pólvora até limpa a mente de alguns autores; no mais, posso dizer
também que os assassinos fugiram em segundos, como esquema tático impecável. A
vida é mesmo uma arte da bola.
No bar do Pestana, Nogueira
sorveu a cerveja, desta vez não tão gelada, do copo americano sujo
e entregou uma outra mala, preta, pequena e de vinil, a Fagner. Depois
tirou de outra bolsa um par de chuteiras e as pôs sobre o balcão de madeira:
- Estas são as chuteiras
de 82, meu amigo; estou as devolvendo ao campeão.
- Um brinde aos craques da
bola... Melhor, a todos os ídolos deste país! – Pestana levantou o copo sujo no
ar empesteado pela fumaça do cigarro vagabundo, e concluiu: – Somos geniais e
desprezíveis, ao mesmo tempo.
- Porra, Buk! – Nogueira o
repreendeu em tom de brincadeira. – Cala tua boca aí e vamos beber, meu, vai.
Pelo amor de Deus!
Todos riram, e beberam.
Fagner ficou um bom tempo namorando as velhas chuteiras como se tivesse
reencontrado o grande amor do passado. Já Stella deu pulos de alegria ao ver o
marido chorando com as chuteiras nas mãos; nem toda Maria é chuteira, e nem todo
campeão vence.