Por
Daniel Lopes
Dizem
que uma imagem vale mais que mil palavras. Tenho minhas dúvidas, mas, se
palavras pudessem ser transformadas em imagem, o livro Sambaqui (Crisálida, 2011) de Edson Cruz poderia ser representado
pelo diagrama Taiji, conhecido símbolo chinês que representa a integração entre
Yin ushiha e Yang kabuto, ou a integração entre o masculino e o feminino, o
diurno e o noturno, o claro e o escuro.
A
poética de Edson Cruz é toda construída a partir de pares de opostos, mas tal
oposição não é mais que aparente, pois, no fundo, há uma unidade no livro. Onde
termina o negro, é passado o bastão ao branco, num círculo semelhante à
superfície de um pandeiro. Feito um Caravaggio pós-moderno, o poeta faz claro e
escuro, luz e sombra, progresso técnico e natureza, som e silêncio se entrelaçarem
nos poemas. Assim, enquanto no poema que abre o livro, temos a sequência: “sob
o acúmulo de neve: vivo” mais adiante nos deparamos com poemas intitulados
“Préstito Negro”, “Sol negro” e “Bile Negra”, no qual surgem imagens como “o
frescor florido da jabuticabeira”, ou “o cheiro do café”. Entretanto, para cada
ponto negro, há sempre o contraponto branco, como em “Aurora”, poema no qual
emergem os versos “um ruído branco/causas e efeitos/em emaranhado/ de névoa”.
Filme antigo? Fotografia em preto e branco exposta na sala? Sim e não. Não tão
simples. Na verdade, todos os pares de opostos, reverenciam e referenciam o
único par de opostos que permeia toda obra humana: VIDA X MORTE: “não
ungido/sem excesso/de melanina/algo assim próximo à matéria/alva que se tinge o
mundo/visão última/dos que erram o alvo/e encontram a morte.” Seria a morte o
fim, ou a morte é só parte do vazio como tudo o mais?
Relendo
o que escrevi até agora, Sambaqui
parece o livro de um descendente de japoneses, ou chineses, enfim, desse
pessoal do Oriente, mas Edson é cria do sincretismo, é “Zé, filho de Edward/um
desterro sem quilombo/ e sobre o nome/a Cruz”, é “nenhum/mulato negro
índio/ninguém tingido d’água” (banzo). E é aqui que o que era oposto se
entrelaça num abraço amoroso e retorna ao UM, fechando o círculo: pandeiro.
Edson é brasileiro, baiano budista (Existe estado mais budista no mundo que a
Bahia?) formado em seminário católico, é Amálgama de José Bonifácio a Jorge
Mautner. No catavento entre Cage, jazz e samba cria uma percussão intitulada “Lágrimas” que faria inveja ao Deus-Naná-Vasconcelos.
Sambaqui
dança com o popular, mas flerta com o erudito. Há poemas de perfeita construção
formal como “Touché”, rápido e rasteiro, fino feito instrumento de esgrima, ou
“Presságio” tão curto quanto o amor ou a vida. Há intertextualidade “de tudo
sobra quase nada. gota de orvalho na/manhã do Saara.”(Caravana Solitária), ou
“de nada resta uma saudade”(Saudade de Nada) que remetem a Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade, ou “seu corpo/encontrado
boiando/inchado de Jonas/baleia sem contorno”, que retoma a parábola bíblica.
Mas, antes de tudo, há por trás de cada palavra nos poemas que compõem Sambaqui, um homem, não um intelectual,
ou um autor. As palavras vivem, pulsam, porque são impregnadas pela seiva de
seu usuário.
Conheço
o trabalho de Edson Cruz, como editor, há algum tempo, desde quando ele
contribuía com o portal Cronópios e aproveito aqui para parabenizá-lo pelo seu
obstinado e incansável trabalho de edição, agora no sítio Musa Rara. Como
escritor, é o primeiro livro dele que leio. Fiquei impressionado. Há uma
passagem no filme Homem Aranha, o primeiro, em que o tio Ben, antes de morrer
com uma bala na barriga, diz ao Peter,
seu sobrinho: - Com grandes dons, vêm
grandes responsabilidades. É isso, parceiro, continue. Com grandes dons vêm grandes responsabilidades. No cenário de
intrigas, marketing e fofocas que permeia a Poesia contemporânea deve haver
homens, meninos, mulheres e velhos que precisam das tuas palavras precisas,
inteligentes e generosas. A poesia é um troço muito sério. Como diria Chico
Science: “A responsabilidade de tocar o seu pandeiro, é a responsabilidade de
você manter-se inteiro”. Eu completaria: de nos manter inteiros também.