30 de jul. de 2012

A responsabilidade de tocar o seu pandeiro

Por Daniel Lopes

Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras. Tenho minhas dúvidas, mas, se palavras pudessem ser transformadas em imagem, o livro Sambaqui (Crisálida, 2011) de Edson Cruz poderia ser representado pelo diagrama Taiji, conhecido símbolo chinês que representa a integração entre Yin ushiha e Yang kabuto, ou a integração entre o masculino e o feminino, o diurno e o noturno, o claro e o escuro.
A poética de Edson Cruz é toda construída a partir de pares de opostos, mas tal oposição não é mais que aparente, pois, no fundo, há uma unidade no livro. Onde termina o negro, é passado o bastão ao branco, num círculo semelhante à superfície de um pandeiro. Feito um Caravaggio pós-moderno, o poeta faz claro e escuro, luz e sombra, progresso técnico e natureza, som e silêncio se entrelaçarem nos poemas. Assim, enquanto no poema que abre o livro, temos a sequência: “sob o acúmulo de neve: vivo” mais adiante nos deparamos com poemas intitulados “Préstito Negro”, “Sol negro” e “Bile Negra”, no qual surgem imagens como “o frescor florido da jabuticabeira”, ou “o cheiro do café”. Entretanto, para cada ponto negro, há sempre o contraponto branco, como em “Aurora”, poema no qual emergem os versos “um ruído branco/causas e efeitos/em emaranhado/ de névoa”. Filme antigo? Fotografia em preto e branco exposta na sala? Sim e não. Não tão simples. Na verdade, todos os pares de opostos, reverenciam e referenciam o único par de opostos que permeia toda obra humana: VIDA X MORTE: “não ungido/sem excesso/de melanina/algo assim próximo à matéria/alva que se tinge o mundo/visão última/dos que erram o alvo/e encontram a morte.” Seria a morte o fim, ou a morte é só parte do vazio como tudo o mais?
Relendo o que escrevi até agora, Sambaqui parece o livro de um descendente de japoneses, ou chineses, enfim, desse pessoal do Oriente, mas Edson é cria do sincretismo, é “Zé, filho de Edward/um desterro sem quilombo/ e sobre o nome/a Cruz”, é “nenhum/mulato negro índio/ninguém tingido d’água” (banzo). E é aqui que o que era oposto se entrelaça num abraço amoroso e retorna ao UM, fechando o círculo: pandeiro. Edson é brasileiro, baiano budista (Existe estado mais budista no mundo que a Bahia?) formado em seminário católico, é Amálgama de José Bonifácio a Jorge Mautner. No catavento entre Cage, jazz e samba cria uma percussão intitulada  “Lágrimas” que faria inveja ao Deus-Naná-Vasconcelos.
Sambaqui dança com o popular, mas flerta com o erudito. Há poemas de perfeita construção formal como “Touché”, rápido e rasteiro, fino feito instrumento de esgrima, ou “Presságio” tão curto quanto o amor ou a vida. Há intertextualidade “de tudo sobra quase nada. gota de orvalho na/manhã do Saara.”(Caravana Solitária), ou “de nada resta uma saudade”(Saudade de Nada) que remetem a Resíduo, de Carlos Drummond de Andrade, ou “seu corpo/encontrado boiando/inchado de Jonas/baleia sem contorno”, que retoma a parábola bíblica. Mas, antes de tudo, há por trás de cada palavra nos poemas que compõem Sambaqui, um homem, não um intelectual, ou um autor. As palavras vivem, pulsam, porque são impregnadas pela seiva de seu usuário.
Conheço o trabalho de Edson Cruz, como editor, há algum tempo, desde quando ele contribuía com o portal Cronópios e aproveito aqui para parabenizá-lo pelo seu obstinado e incansável trabalho de edição, agora no sítio Musa Rara. Como escritor, é o primeiro livro dele que leio. Fiquei impressionado. Há uma passagem no filme Homem Aranha, o primeiro, em que o tio Ben, antes de morrer com uma bala na barriga, diz ao  Peter, seu sobrinho: - Com grandes dons, vêm grandes responsabilidades. É isso, parceiro, continue. Com grandes dons vêm grandes responsabilidades. No cenário de intrigas, marketing e fofocas que permeia a Poesia contemporânea deve haver homens, meninos, mulheres e velhos que precisam das tuas palavras precisas, inteligentes e generosas. A poesia é um troço muito sério. Como diria Chico Science: “A responsabilidade de tocar o seu pandeiro, é a responsabilidade de você manter-se inteiro”. Eu completaria: de nos manter inteiros também.