30 de jun. de 2012

Um tempo de muitos espíritos

Por Daniel Lopes

“No momento em que é publicada, toda obra de criação deve sustentar-se por si mesma e provocar o efeito a que se propõe. Por isso, jamais fui propenso a suplementar meus trabalhos de prefácios ou posfácios, tampouco apresentei quaisquer justificativas aos críticos. Contudo, quanto mais esses trabalhos recuam no passado, tanto menos eficazes se tornam, comparados à eficácia original. Deveras, quanto mais consignados à cultura nacional, menos são estimados, assim como as mães são, facilmente, ofuscadas pelas belas filhas. Portanto, é justo e válido garantir o valor histórico dessas obras, discutindo-lhes as origens com homens de discernimento e boa vontade.” O trecho é da autobiografia Poesia e verdade, de Goethe, mas define muito bem o trabalho de Luiz Brás. Num tempo em que as exposições de Arte Contemporânea dispõem um livro ao lado de uma escada, para explicar o valor artístico da escada  que parecia ter sido esquecida ali  por algum pedreiro distraído, é sempre bom voltar a Goethe. A obra tem de se sustentar.  Entretanto, há artistas que constroem obras autossustentáveis e que, ainda assim, abrem espaço para a discussão com homens de discernimento e boa vontade. Tais artistas nos dão a casa construída e a planta, nos dão o vestido e o desenho: o gato por dentro, como diria Willian Burroughs.  Não têm medo de demonstrar a arquitetura e o esqueleto de seus produtos culturais: é a figura do artista reflexivo, que encontra representantes notáveis nas figuras de Julio Cortázar, Ernesto Sábato, Ezra Pound, Borges, José Paulo Paes, Piet Mondrian, em toda a turma da Nouvelle Vaugue e em Luiz Bras, autor de Muitas Peles, primeiro livro de Ensaios.

No texto que abre o livro,  Infinito: um delírio? O autor afirma: “Eu escrevo esta crônica e você a lê” e no parágrafo anterior eu disse que se tratava de um livro de Ensaios. Crônicas reflexivas ou Ensaios? Hoje, a palavra Ensaio parece nomear um professor universitário de terno e gravatinha borboleta, como aqueles professores dos anos cinquenta, mas nem sempre foi assim. Michel Montaigne, o pai do gênero, afirma no prefácio de seus Ensaios que o assunto do livro é ele mesmo, suas vivências e reflexões e discute, ao longo da obra, até a função e a importância dos polegares. Luiz Bras escreve textos leves e profundos à semelhança do filósofo francês. Assim, de agora em diante, passo a chamar os textos de Muitas Peles de Ensaios.

          O livro conta com dezessete textos distribuídos, aparentemente, de forma aleatória. Eu, contudo, identifiquei quatro frentes temáticas. Na primeira, mais ligada a questões científicas e a indagações quanto ao futuro e à tecnologia, encontramos os textos:  Morte e imortalidade, Infinito: Um Delírio, Fim do Papel, Fim da Poesia e Escolha um Futuro. Na segunda, o autor trata de questões ligadas à ficção científica e suas relações com o mainstream. Textos: Convite ao Mainstream, Um Bárbaro Que Se Preze Não Vem Para o Chá das Cinco (de Roberto de Sousa Causo) e Cinco Erros. Na terceira leva de textos, Sabedoria Secreta, O Autor e Seu Editor e Crítica é Cara ou Coroa, Luiz trata de questões ligadas à literatura em geral e ao mercado editorial.  Aqui se encontra um dos melhores textos do livro: Crítica é cara ou Coroa. E a quarta  frente! Ah, a quarta frente me fez chorar!  São os textos que tratam da literatura infantil ou infanto-juvenil: Olha Mãe, Uma Cor Voando! , Encontro Com o Autor-Personagem (de certa maneira) e o mais bonito: Paraíso perdido: a infância. Quando cheguei ao final do último, tive de me segurar. A tira mais triste do mundo é de fato a tira mais triste do mundo.

No primeiro parágrafo, afirmei que Luiz é um autor reflexivo, desses que nos dão o vestido e o desenho, a casa e a planta, enfim, o gato por dentro. Comparando Muitas Peles a Paraíso Líquido, primeiro livro de ficção do autor, percebemos como foi o processo de criação dos contos que compõem Paraíso. Os Ensaios de Muitas Peles (contradizendo o título) são o esqueleto e os Contos de Paraíso Líquido são a carne da literatura de Luiz. Deste modo, o Ensaio Paraíso Perdido: A Infância, está intimamente ligado ao conto Primeiro Contato. O Ensaio Morte e Imortalidade é a ossada do conto Paraíso Líquido. Infinito Um Delírio liga-se a Déjà-vu e São Paulo, 31 de julho de 2013 e O Ensaio Convite ao Mainstream ecoa em todos os textos de Paraíso Liquido, como apontei no Ensaio Do Artista Enquanto Liquidificador.

          Toda época, tem um espírito, um  Zeitgeist, que geralmente só é percebido depois. Qual será o Zeitgeist de nosso tempo? O espírito que define os nossos dias? Luiz Brás reflete sobre o assunto enquanto vai vivendo a vida e chega à conclusão de que nossa época não tem um espírito, mas muitos espíritos… muitos zeitgeists…  muitas peles ao mesmo tempo. Se está certo ou errado só o tempo vai dizer, é cara ou corôa, como ele mesmo diz no livro.

Um sopro de inteligência e reflexão, esse Muitas Peles.