26 de abr. de 2012

O gato pardo

Por Diogo Almeida

"Talvez, mais tarde, haja alguma inteligência que reduza o meu fantasma a algo comum - uma inteligência mais serena, mais lógica e muito menos excitável do que a minha, que perceba, nas circunstâncias a que me refiro com terror, nada mais do que uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais." (Edgar Allan Poe, "O gato preto")

Uma única imagem perseguiu-me durante toda minha longa vida: eu, aos sete anos, chorando ao lado da janela e sendo repreendida por mamãe. Também me lembro de ver minha avó debruçada na janela, olhando para fora.

Ela mirava, como bem sei hoje, seu gato pardo estatelado na calçada. Em minha crueldade infantil e, provavelmente, devido ao ciúme pelas atenções de minha avó, eu havia apanhado a pequena criatura e a lançado pela janela do nosso apartamento. Naquele momento, mamãe deveria estar gritando algo sobre não jogar gatos pela janela, especialmente se eles pertencessem a membros de nossa família.

Por décadas e décadas, essa fotografia mental me perturbou até o âmago da alma, fazendo-me retornar a meus medos de menina no exato instante em que dela me recordava.

O impacto dessa lembrança dos meus sete anos meio que desviou minha trajetória para uma determinada direção. Nos anos seguintes, tudo – ou quase tudo – parecia originar-se daqueles gritos tenebrosos de minha mãe. Minha sensibilidade aguçou-se, e passei a considerar toda vida frágil e preciosa. Por incrível que pareça, passei a gostar de animais, e tentei transmitir à minha filha, assim que esta nasceu, minha paixão fervorosa por todos os seres vivos.

Dessa forma, é possível imaginar meu assombro quando, ao chegar em casa, minha mãe contou-me que a menina, em seus tenros sete anos, havia jogado seu gato pardo pela janela. Furiosa, chacoalhei a menina e berrei, disparando as frustrações acumuladas ao longo do dia e da vida, buscando fazê-la apreender a importância que cada existência tinha na tessitura do universo. Ela rompeu em prantos, obviamente. Arrependi-me do escândalo logo depois, mas não voltei atrás. Minha mãe, desesperada, procurava com os olhos vidrados no asfalto o gato que a acompanhara por quase toda a velhice.

Naquela noite, temi haver traumatizado minha filha. Tive ganas de ir até seu quarto, acordá-la e beijá-la e lhe dizer que poderia arremessar pela janela quantos gatos pardos quisesse, que eu nunca mais gritaria com ela daquele modo. Mas não o fiz: receei que, caso afagasse sua cabeça naquele momento, ela nunca aprenderia a lição. Permaneci na cama.

Creio que o incidente acabou causando grande impacto em sua personalidade. Da noite para o dia, tornou-se mais amarga e rancorosa. Os anos se passaram sem que, aparentemente, a lembrança daquele dia enfraquecesse em sua memória. Fingia ser gentil com todas as pessoas e animais, mas eu, sua mãe e criadora, sabia que ela não tinha qualquer amor sincero por qualquer ser que se arrastasse sobre a Terra. Era como se meus gritos tivessem interrompido, em um momento crítico, o natural processo de formação de seu caráter. Naquele dia, algo morrera nela.

Ainda assim, vivi calada meus anos em seu apartamento e tolerando seus gestos vazios e indiferentes. Quando ela me comprou um gato, em sua autopropalada ânsia de mostrar-se caridosa com a mãe e um gato ao mesmo tempo, permaneci muda. Até quando nasceu minha neta, nenhuma satisfação cresceu em mim: observava o rostinho da criança por horas a fio, vendo-a chorar sem nada fazer. Finalmente, dava-lhe o leite ou trocava as fraldas, indefesa diante das escolhas que a vida havia-me legado.

Diante da silenciosa derrota que minha filha havia me imposto, pude apenas praticar uma última vingança. Um dia, quando a neta já possuía lá seus sete anos, aproximei-me da janela com meu gato pardo. Por um largo tempo eu fingira que gostava do animal quando, na verdade, nada sentia além de asco por ele. Lembrava-me minha filha. Ela, tão fútil e cheia de si; tão oca.

Senti que minha vida não havia passado de um tortuoso círculo de enganos e falsidades. O caminho a seguir parecia mais claro. Assim, ergui o gato e o empurrei pela janela.

Diogo Almeida,  nascido em Natal - RN, é jornalista de formação e, desde 2006, diplomata. Desde pequeno gosta de ler, hábito adquirido na família, e recentemente começou a fazer incursões mais sérias na área do conto. Planeja publicar seu primeiro livro em breve. Reside atualmente em Portugal.