Por Nilto Maciel
Moravam no vigésimo andar.
Noronha, quando voltava do trabalho, à noite, tomava banho e, durante o jantar,
conversava com a mulher e os filhos. Logo os meninos voltavam a brincar e Irene
se derramava no sofá diante da televisão. O homem sorrateiramente se encafuava
num quarto, para ler e escrever. Havia quase vinte anos escrevia e reescrevia a
mesma história: “Quando a carroça parou à frente de nossa casa, minha tristeza
aumentou. Os homens carregavam os móveis. O burro comia capim. Mamãe dava
ordens. Cuidado com o pote! Deixava para trás amiguinhos, a calçada, a rua, a
própria casa, o quintal. Os poucos móveis logo encheram a carroça. O maior
deles talvez fosse a mesa de refeições. O fogão de alvenaria, construído no
chão, não poderia ser levado”.
Finda a novela, Irene agarrava
um caderno e se punha a fazer contas e mais contas. Só se descuidava dos
números quando Zenóbio a procurava, aos prantos. Ele está me fazendo medo.
Quem? Só pode ser o Ari. Resolvida a pendenga, voltava ao caderno. Como juntar
muito dinheiro para comprar três apartamentos, um para cada filho? Fazia
cálculos astronômicos, riscava, rabiscava.
Havia quase vinte anos Noronha
estudava línguas. Tencionava dar à sua história outras feições. Traduzia para o
francês o trecho: “Ao final da tarde, após a saída da carroça, fechadas porta e
janela, seguimos nós, mamãe e os meninos, a pé, rumo à nova casa. Uma tristeza
sem fim. Quando veríamos de novo os amiguinhos, a casa, a rua? Ora, poucos
minutos de caminhada separavam uma casa da outra. Para mim, no entanto, era
como se estivesse deixando meu país e me retirando para muito longe, me
exilando”. Finda a tradução, reescrevia o original: “Sol posto, a carroça
pesada, o burro trôpego...”.
Durante meses estudou grego.
Como não conseguisse aprender nada, trocou o grego pelo romeno. Desiludido,
voltou ao inglês. Economista, trabalhava no Banco Central. Gastava os dias a
ver normas, tabelas, gráficos, números, manuais. De noite desejava esquecer
tudo aquilo e se dedicava à sua reminiscência infantil. Estudou sânscrito,
latim, alemão. Disso, porém, ninguém sabia. Como não sabiam de sua história.
Não a mostrava a ninguém. Nem mesmo a Irene. Se a ela perguntavam as amigas:
Que fazem vocês à noite? Ela respondia vagamente: Assisto às novelas, enquanto
Noronha lê. Não vão a cinema, shopping, restaurante, teatro?
Noronha gostava também de
aeromodelismo. Passatempo de fim de semana. Mal o sábado começava, saía de casa
para soltar aviõzinhos muito coloridos e barulhentos. Lembravam-lhe as pipas da
infância. Quando passou a sentir preguiça ou desânimo, convidou os filhos para
irem ao campo. Aristarco pareceu o mais interessado. Queria pilotar um daqueles
aviões. Noronha riu. O menino projetava voos para além das estrelas. Fugir da
cidade. Zenóbio não gostou nada dos aviões. Apetecia-lhe voltar para casa e
brincar com os anõezinhos de plástico. Se o pai pudesse ficar com o irmão,
melhor ainda. Assim, não seria importunado por Ari e suas conversas esquisitas.
Nos fins de semana e de noite
Irene andava para lá e para cá, sempre a ralhar com os filhos, quando cansava
dos cálculos para a compra dos apartamentos. Também trabalhava no Banco
Central. Noronha lhe arranjara uma bela função: ler relatórios. Bastava ler.
Nada de comentários, explicações. Ninguém cobrava resultados. Lesse ou não
lesse, garantia-se o salário no fim do mês. Mais uns cobres para a poupança.
Mais uns tijolos para os três apartamentos. Arredia, quase nada falava às
colegas. A não ser dos filhos. Vocês casaram tarde, não foi? Com quase quarenta
anos. E como são os meninos? Uns capetas. A amiga ria. Toda criança é assim
mesmo. Irene se queixava mais ainda da menina Flora. Não larga o pai. Parece
que o quer para marido. A colega olhava assustada para ela. Essa mulher deve
ser louca. Zenóbio, o outro menino, também um diabo, porque não parava de
implicar com Aristarco. Consumia o tempo todo a enredar: Ele está me dizendo
que os seres estão atrás da cortina. Estou com medo. A menina, sem calcinha,
vez por outra corria e se jogava nos braços do pai. Ele a acolhia, abraçava-a e
percebia a falta da peça íntima. Tocava em seu sexo e perguntava por que ela
não vestia a calcinha. Ela ria e mais se agarrava a ele. A mulher se aproximava
e fitava o marido: Por que você vive agarrado a ela? Parece que é tarado? Ele
se defendia: A bichinha vem para mim, querendo carinho. A menina ria e voltava
ao quarto, aos brinquedos, às bonecas de pano por ela mesma feitas. Todas
semelhantes à mãe. E espetava agulhas na bunda das bonecas. E ria, de prazer sádico. Muitas e muitas
calcinhas da menina a mulher encontrou nas gavetas da mesa de estudos do
marido. Noronha, para que você quer as calcinhas de Flora? Ele se assustava. Eu
não sei como vieram parar aqui. Deve ter sido Florinha. A mulher voltava aos
cálculos. Desejava saber de quantos anos de trabalho precisava para poupar o
dinheiro da compra dos imóveis.
Aristarco vivia pelos cantos a
falar com seres invisíveis. Dizia para o irmão: Eles estão escondidos por aí e
vão aparecer a qualquer hora. Eles quem? Não posso dizer. Eles não gostam de mexericos.
Via seres pequeninos pelo apartamento. Eles vão aparecer e nos atacar. São
malvados. Zenóbio empalidecia, tremia todo e corria para a sala, em busca de
salvação. A mãe se zangava. Parasse com aquela conversa idiota. Não a
interrompesse mais.
Um dia, Aristarco se escondeu
detrás do sofá e ouviu uma conversa dos pais: Precisamos levar Arizinho ao
psicólogo. Melhor levá-lo ao psiquiatra. Zenóbio me contou tudo. Ele vive
falando de uns seres invisíveis, escondidos na casa, prontos a nos atacar. Talvez
seja doido, e nós de nada sabemos. Precisa de tratamento. Poderemos até
interná-lo. Coitado! O menino se apavorou e correu para o quarto, a conversar
com os amiguinhos ocultos. Na sala a conversa prosseguia: Ele pode tentar o
suicídio. Pular? Sim, pular do vigésimo andar. De noite acorda e sai pela casa.
É sonambulismo, meu bem.
No outro dia, o casal contratou
um homem para pôr grades nas janelas. Ninguém prestava atenção ao trabalhador.
Os meninos brincavam, Irene fazia cálculos na sala, Noronha lia, relia e
reescrevia sua reminiscência: “Dias depois, minha irmã Dalva veio passar
férias. E com ela chegaram umas cadeiras de palha grandes”.
Ao ver as grades, Aristarco se
espantou. Precisava fugir o quanto antes. E se pôs a arquitetar o plano de
fuga. Levava horas e horas dentro de armários, trancado no banheiro, a
confabular com os amigos imaginários. E um dia, numa tarde antes de o Sol se
pôr, diminuiu-se o mais que pode, tornou-se do tamanho dos inquilinos
invisíveis, colou ao corpo umas asas de papelão e voou pela janela, apesar das
grades. O pai o viu sair, se aterrorizou e gritou: Volta, Arizinho, volta. E
gritava pela mulher e pelos outros filhos. Ele fugiu, ele voou. Venham ver.
Está a caminho do Sol. E lá no céu o menino voava, pequenino, quase nada, a
sumir no rumo da grande estrela. Flora deu um salto e se lançou nos braços de
Noronha. Pai, compra mais uma caixa de agulhas. Zenóbio correu para o quarto,
contente por estar só e poder jogar com os anõezinhos de plástico. Ainda bem
que ele foi embora. Irene deu adeus ao filho, até não vê-lo mais, e correu para
o caderno de contas. Não precisava mais de tanto dinheiro. Dois apartamentos
bastavam. O homem, conformado com a perda do filho, voltou ao quarto e abriu o
caderno: “Minha irmã trouxe também uma mocinha chamada Mariinha. Pequenina,
bonita, sapeca. Para mim uma boneca viva e muito maior do que eu”. Pela janela
o menino passou, a voar, rindo sem parar.
* Este é o sexto conto da primeira parte do livro Luz vermelha que se azula, de Nilto Maciel.