27 de mar. de 2012

Vigília

Por Geraldo Lima
 
Há quantos dias está aqui? Há quantas noites? Tem a sensação de estar há séculos esmurrando essa porta, arranhando seu mogno com o que ainda lhe resta de unha. Estão, como costumam dizer, no sabugo. Olha como sangram as pontas dos meus dedos! E nenhuma resposta vem lá de dentro. Silêncio absoluto. Indiferença de pedra, frieza de lâmina. Se ele abrisse a porta, veria o estado em que ela se encontra. Eu e a criaturinha que se assusta dentro de mim, dando chutes a esmo. Criatura que é parte dele, sangue do seu sangue, carne da sua carne. Mas nem isso o comove. É como se estivesse morto. Há  dias não sai  só para não ter de abrir a porta e permitir-lhe a entrada na casa de onde ela nunca deveria ter saído. Alguns vizinhos já estão incomodados. Há, no entanto, os que se solidarizam com a sua dor, aconselhando-a a desistir dessa luta vã, inglória, que não aponta para paraíso algum. Que inferno você tem vivido, menina! O que não sabem é que já tentou se libertar, encontrar um rumo diferente para a sua vida, mas foi inútil. Quando deu por si, já estava aí, diante da porta, implorando para entrar. Sim, sim, pedindo para retornar ao meu calvário, ao suplício de todos os dias, os berros, os escândalos, os choros. Sangram, sangram as pontas dos seus dedos, enquanto continua a arranhar a porta feito uma gata esquecida ao relento. Tal qual uma gata, mia e mija no mais completo desespero. Vai, certamente, defecar aqui quando a vontade chegar e tornar-se insuportável. Aos poucos, toda essa área ao seu redor vai se tornando irrespirável. Sabe que não demorará e toda a vizinhança estará incomodada com a sua presença. Talvez acionem a polícia ou o corpo de bombeiros para retirarem-na daqui, como se ela fosse uma vaca atolada no brejo. Uma vaca que, sem forças nas pernas, arriasse com o peso do corpo, dando início a um lento processo de apodrecimento ainda com o coração bombeando sangue para as artérias. Não será difícil removê-la: não tem mais forças nem para implorar que ele abra a porta. O que sobe pela garganta e escapa por entre a sequidão dos lábios é só um fiapo de voz, sons quase que ininteligíveis, sem força para atravessar a madeira maciça e mergulhar no ouvido de Artur.

Há poucos minutos, a senhora do 302  trouxe-lhe água e um pouco de comida. Vive sozinha com dois gatos siameses e sempre lhe pareceu a figura mais bizarra deste prédio.  Agora, comovida, sente sua mão generosa e maternal acariciando-lhe a cabeça. Basta um gesto, e toda uma imagem se refaz: esta senhora  bem poderia ser a mãe que ela perdeu ainda muito cedo. Filha, desista dessa loucura. Pense no seu filho, na saúde dele. Se esse homem não abriu até agora, é porque não quer que você entre. Está tão fragilizada que nem tenta rebater as palavras da velha senhora como vinha fazendo até então com os demais. Desde o início, renegou todos os conselhos, desprezou todas as ajudas, afugentou os curiosos. Não tinha dúvida do sucesso do seu cerco, estava confiante na vitória — dia menos dia, o inimigo haveria de se render sedento e faminto. Aí, ela invadiria o seu reduto e imporia as suas ordens. Só não contava com a extrema dureza do coração de Artur. Com sua tática de nem responder aos seus xingamentos. É como se ele nem estivesse em casa. Como se, todo esse tempo, ela tivesse se batido  com o nada.

(Já deve ser noite. Essa escuridão repentina não pode ser outra coisa. Mas logo vão acender as luzes das escadas e será como se fosse dia claro. Não posso é deixar que o sono me vença: a vigília é sem descanso.)

(...)

 Não sabe se está sonhando ou delirando, mas ouve, longe, longe, o ranger duma porta sendo aberta, e passos que emergem do abismo, pesados, lentos, como os passos de Artur, parece ouvir ainda o som angustiante de uma sirene que se aproxima, ou se afasta, não tem certeza... alguém respira junto ao seu rosto, duas mãos firmes e grosseiras envolvendo-lhe os ombros, braços, muitos, muitos braços erguendo o seu corpo, um turbilhão de vozes, um mar de gestos e sons, tanto movimento que o seu estômago se rebela e cospe o pouco que ingeriu, e dores, muitas, muitas dores querendo expulsar do seu útero a mais viva lembrança de Artur.  

(Do livro de contos 'Baque', LGE Editora)