Por Daniel Lopes
Crie um homem alto, magro, triste. Ao mesmo tempo, baixo, gordo, triste.
Ele atravessa cabisbaixo, olhando seus sapatos vermelhos de bico fino, um imenso salão barroco, cujas paredes são carregadas por poderosos ornamentos. Não há qualquer móvel no cômodo, salvo uma pequena vitrola no canto esquerdo. Seus passos ecoam distantes dos ouvidos como se fossem absorvidos por grossas almofadas... Como se seus próprios ouvidos estivessem distante do corpo. O homem chega à vitrola. Há um disco de quarenta e cinco rotações ali ao lado. Ele o apanha, retira o vinil da capa, coloca na vitrola, ouve os primeiros chiados da agulha em contato com os sulcos negros. Sente saudades de tudo o que viveu e de tudo o que não viveu. Os sussurros de todos os mortos chegam às suas orelhas desiludidas, mas são interrompidos pelos primeiros versos da canção, Waterloo Sunset, The Kinks, a banda mais injustiçada da história do Rock n´ Roll. “Dirty, old river, must you keep rolling / Flowing into the night”. (Velho rio sujo, você precisa mesmo escorrer noite afora?). O homem alto, magro, triste, baixo, gordo, triste envolve a si mesmo com os braços e sai dançando inteiramente sozinho sobre o chão quadriculado, preto e branco, parecido um imenso tabuleiro de xadrez.
Este homem, cujo par é uma sala vazia, é o escritor hoje. Este homem sou eu. Este homem é você. Alguém que tem de se contentar em dançar sozinho.
Para que um texto exista e cumpra sua função mais primordial: comunicar, são necessárias pelo menos duas figuras. O Escritor e o Leitor. Hoje, enquanto o escritor se torna cada vez mais individual e individualista, a figura do Leitor desapareceu, morreu, ou melhor, as duas figuras, escritor e leitor, fundiram-se em uma só pessoa. Com o advento da comunicação de massas, a Literatura perdeu a força que ostentava até meados do século XX, ela, a Literatura, perdeu o sentido de síntese de uma época. Neste nosso tempo, o interesse literário se fechou. Todo mundo que lê, escreve... E, todo mundo que escreve, lê, ainda que leia pessimamente seus contemporâneos. É um mito essa história de colaboração entre escritores de uma mesma época. Cada um está defendendo o seu, correndo atrás do sonho. As pessoas só ajudam umas as outras, quando imaginam que vão receber algo em troca. Assim , você só será lido se tiver algo a oferecer a esse leitor-escritor que te leu. É tudo muito mercadológico e político. Sinceramente, prefiro abrir mão de ser lido desta maneira. Por que se lê mal assim? Porque, na verdade, o leitor hoje, está mais interessado em seu próprio texto enquanto escritor, do que no texto do outro. É fácil tecer o elogio fácil em troca de outro elogio ainda mais fácil. Tudo muito político, porque amanhã o autor do outro texto pode estar por cima da carne seca e ter algo a oferecer. Esse leitor-escritor é o cara que passa rápido a vista sobre as páginas, pesado como um rolo compressor, esmagando tudo o que é delicado e sutil e... Como é importante a sutileza num texto literário! Sem as sutilezas, Perto do Coração Selvagem seria só o diário de uma adolescente. Sem as sutilezas, a maioria dos contos de Lygia Fagundes Telles seriam só histórias de donas-de-casa.
Você deve estar pensando que me equivoquei, ou que exagero. Nem todo mundo que lê, escreve. Do contrário, o que explicaria o fenômeno da saga Crepúsculo? Ou Harry Potter? Ou mesmo Pornopopeia? Abro mão desses leitores também. Vamos ser sinceros, todo mundo sofre, mas grande parte da humanidade sofre bem menos por ser idiota. Eu não escrevo para idiotas, porque tenho certeza de que não vão me compreender. Escrever é um ato para o qual não há salvação. O fracasso é sempre muito doloroso, mas no artista ele é sempre trágico. E o sucesso... O sucesso é a certeza de que você não conseguiu transmitir seu pathos, ou de que você não está sendo compreendido pelo que pretendeu dizer, ou então de que você é só mais uma besta, entre tantas outras bestas na humanidade. Às vezes tudo parece um grande equívoco.
Por que escrevemos, então?
Escrevemos por necessidade, mas isto é assunto para um outro ensaio.
Para quem escrevemos, então?
Você eu não sei. Quanto a mim, escrevo para este menino desajeitado, inteligente, sensível, solitário, que está sofrendo neste exato momento em algum rincão do planeta, ou que ainda vai nascer daqui a dez... Quinze anos. Escrevo para esse menino que ouve algumas músicas no rádio à noite e chora por uma mulher que ele ainda nem tem idade pra amar. Escrevo para esse menino que o mundo vai machucar, pra esse cara que vai pensar em suicídio... Que vai provar da solidão mais solitária de todas as solidões... Que vai se tornar alcoólatra... Que vai ter de parar de beber... Que vai trair e ser traído e se machucar... Que vai carregar responsabilidades tão pesadas que nem um burro de carga suportaria. Escrevo porque o compreendo e o amo como a um irmão e quero dizer que ele não está sozinho. Escrevo porque um dia Jack Kerouac escreveu On the road pra mim. Escrevo porque um dia Céline escreveu Viagem ao fim da noite pra mim. Escrevo porque Knut Hamsun escreveu Fome pra mim e Shakespeare escreveu as quatro dark plays também pra mim e porque aquele rio velho e sujo dos Kinks, vai continuar fluindo pela noite afora, e aquele homem tem sempre a necessidade de dançar, ainda que sozinho. Escrevo e a corrente não pode ser quebrada. Depois de van Gogh os girassóis nunca mais foram os mesmos. Atiro essas garrafas no mar e, se um dia tiver de ser, elas chegarão até ele e não vai haver necessidade de explicações: nossos corações são o mesmo coração.