Por Nilto Maciel
Januário passava o dia a sonhar com passarinhos e sardinhas. Cochilava e sonhava com os mais variados tipos de bicho. Como queria comê-los, devorá-los! Vivia no sexto andar, com todas as regalias do mundo. Mas queria ser deputado ou senador. Viver numa mansão do Lago Sul. Perto do lago, dos peixes, embora odiasse água. Apesar de viver a sonhar, não podia se queixar da vida. Comia do bom e do melhor. Traziam-lhe comida de primeira. Davam-lhe água pura, leite. Dormia bem. Nem se lembrava mais do tempo em que só pensava em matar e esfolar ratos. Sentia-se perfeitamente domesticado, civilizado. Até assistia às novelas da televisão. Mas logo se aborrecia com aquele falatório sem pé nem cabeça. E cochilava ou se retirava da sala. Não se lembrava nem do tempo em que vivia numa jaula ou gaiola. Terá acontecido isso mesmo? Às vezes imaginava fatos e muito depois descobria ser tudo fruto da imaginação. Ou andava pelas ruas, morto de fome? Chutavam-no? Não, não se lembrava disso. Na verdade, nem sabia o que era um rato. Ouvia falarem, vez por outra, desse tipo de bicho. Mas não se preocupava com aquilo. Conversa de homens e mulheres. Não lhe dizia respeito aquilo.
No apartamento viviam ainda dona Mariana, que cuidava dele como se cuidasse de deus; seu Osmundo, que o tratava como a um rei; o grande Astúrio, 16 anos, que olhava para ele com carinho, mas logo se irritava, estirava-se no sofá com tênis sujo; e Mafalda, 15 anos, que de vez em quando lhe fazia afagos. Gostava deles. Não o tempo todo. Pois aqui e ali surgiam breves dissabores. Como quando doutor Osmundo (era assim que tratava o dono da casa a empregada) tomava uns conhaques, passava a dançar na sala, ao ritmo de sambas antigos, ria sem parar e se atrevia a dar-lhe piparotes nas orelhas. Não, não gostava daquilo. E corria para o mais fundo do ambiente, um quarto onde se amontoavam sacos e latas de mantimentos. Só saía de lá muito depois, quando tudo sossegava na casa, o doutor arriava no sofá ou na cama. Dona Mariana não tomava conhaque nem gostava de samba. Por isso não o aborrecia quase nunca. Ela, sim, se aborrecia quando o marido voltava tarde da noite. Ia e vinha pela casa, a falar, a chorar. Transitava pela casa e nem me via, como se passasse por uma pedra. Aquilo me deixava triste. Outro que me contrariava vez por outra era o menino. Assustava-me quando abria a porta do quarto e aquele som de mil decibéis invadia a casa toda. Parecia um louco, a berrar (dizia que cantava) umas palavras sem sentido. A menina imitava a mãe: caladinha, quase sempre. Isso me enfadava também. Perdia horas diante do computador, a rir baixinho. Por que não passava a mãozinha na minha cabeça? Eu adorava esse tipo de carinho.
A empregada, dona Eunica, o tratava bem, mas vivia brigando com ele e ouvindo música do rádio. Uns forrós muito chinfrins. Por nada ralhava com ele. Sai daí, bicho dorminhoco. Ele olhava para as árvores e os passarinhos, pela janela de vidro, sempre fechada. Via os passarinhos voando lá fora, no alto, perto das árvores e do céu, e queria pegá-los. Como, se a vidraça estava sempre fechada? Um dia pegaria aqueles passarinhos. Nem que fosse num voo espetacular, celeste. Nesses pensamentos, pegava no sono. E sonhava no paraíso. Sombras e mais sombras de árvores enormes. Peixes pequenos nadavam na beira do lago. As águas dançavam lentamente. Não havia cachorros por perto. Nem latidos se ouviam. O céu parecia um campo de plumas azuis e brancas. Ninguém o incomodava. Não o chamavam de preguiçoso ou dorminhoco. Não o agarravam pelas patas. Homens, mulheres e crianças havia, mas nenhum deles o ameaçava. Passavam ao largo, olhavam, sumiam. Acordava com uma pulga atrás da orelha. Aquilo não podia ser verdade. Aquilo não existia, nem ali nem muito longe. Melhor sonhar acordado, sonhar possibilidades. Como ser deputado ou senador, para nada fazer, ganhar muito dinheiro, andar para lá e para cá, falar, falar e ser respeitado. Ou morar no Lago Sul, perto do lago. Depois rir do sonho impossível e ficar quieto, perfeitamente satisfeito com a vida.
Januário não se aborrecia quase nunca. Certa feita, porém, apareceu um sujeito em visita ao doutor. De início, de longe, até simpatizei com ele. Pensei em dar-lhe um susto, por brincadeira. Aproximei-me dele, devagar. Pois não é que o idiota olhou para mim e sapecou a pergunta: Qual o nome dela? Ora, me chamar de ela! Dona Mariana saiu logo em minha defesa: Ele já é um senhor, tem até barbas brancas. Respeite o meu Januário. Eu me enfunei todo, passeei pela sala, dei meia-volta e corri para o meu quarto, irritadíssimo.
Uma tarde, quando todos dormiam ou liam ou estudavam ou lavavam louça ou não se encontravam em casa, a empregada deixou a vidraça aberta, um passarinho riscou o céu feito uma flecha, outro passou no rumo das nuvens, e ele, Januário, se preparou para pegar o próximo aventureiro. O instinto falava mais alto. A civilidade ia por água abaixo. Os hábitos ancestrais de caçar renasciam. A sanha de matar ressurgia nele. Domesticado coisa nenhuma! E saltou através da janela, em busca do pássaro.
* Este é o quinto conto da primeira parte do livro Luz vermelha que se azula, de Nilto Maciel.