Por Marcia Barbieri
Encarnación gostava de ficar sentada
sob o sol olhando os emaranhados da videira. Ela se esparramava e ocupava a
tarde podre. Encarnación, eu era fascinada pelo seu nome. Ela ria gostoso,
desses risos de gente velha “minha filha esse nome traz má sorte”. Não ligava,
Anna me parecia solitário demais, lembrava as migalhas do tempo, os bagos
fermentando as vistas. Nos dias de festa, as moças arreganhavam as saias e
esmagavam os cachos com os pés. Foi assim que experimentei pela primeira vez o
gosto da carne, disfarçado no gosto vermelho da uva.
Anna era descendente de
uma tribo distante. Um povo selvagem que na época de pouca fartura devorava ritualisticamente
seus cadáveres.
A
clarividência é meu inferno, muita gente reza todos os dias para ter o meu
poder. No entanto, jamais desejaria, nem mesmo ao meu pior inimigo, conseguir
enxergar todas as frestas que vejo, cada minúsculo buraco, é como uma lagarta de
fogo que percorre infinitamente o mesmo tronco e mesmo sabendo da sua sina é
impossível trilhar outro caminho. Eu sei as tramas de todas as minhas histórias
e isso não me impede de vivenciá-las.
Quando
eu conheci Anna já sabia seu destino, já sabia como seu corpo se entranharia no
meu – videira vasta sem espaço, vísceras mortas devastando o asfalto. Foi
impossível não me apaixonar por Anna, ela exalava um cheiro de desgraça que me
corrompia e me aproximava. Seria capaz de lamber seus pés até que ela
adormecesse.
A
primeira vez que entrei na sua casa, me assustei. Na parede do seu quarto
estava pendurado um cavalo que era só sombra por dentro, os olhos vazados, os
músculos exaustos disfarçando o oco, como se tivesse sido devorado por um
monstro.
Não foi fácil convencê-la
do meu amor, ela tinha um olhar atravessado, não via o que estava a um palmo do
seu nariz, mas o que estava diametralmente oposto a ele. Olhando para o chão,
só conseguia enxergar as teias de aranha do teto. Eu compreendia perfeitamente,
eu também não era a pessoa mais normal do mundo. Um dia ela me confessou que
era verdade o que eu tinha visto, ela era descendente de um povo chamado Antípodas.
Antes
disso, antes da sua confissão, passei várias noites em claro tentando entender
o que aquilo poderia significar. Na cabeça me apareceu Antípodas, comecei me impressionando
com a origem da palavra, em seguida fui imaginando os mapas, a cartografia
traçando opostos, de um jeito ou de outro a matemática me intrigava. Mas não
foi a matemática que me levou a descobrir que na Antiguidade seus parentes
tinham os pés opostos. Comecei a compreender porque a primeira vez em que vi
Anna ela corria entre as videiras plantando bananeira. Na segunda vez que a
encontrei ela tinha um espelho colado no peito, andava rindo, catando as uvas
estragadas e colocando na boca, de longe escutava os estalos e o cheiro
fermentado da sua língua geográfica.
Embora
nunca tenha me enxergado por completo, Anna começou a me enamorar. Ela
gargalhava quando escutava minha voz, saía da posição de bananeira e me dava
uma lambida no rosto. Não posso dizer que isso me impressionava, pois eu já
sabia do que Anna era capaz.
Anna
cutucava o chão, comia desesperada as raízes, os tubérculos, as pequenas
minhocas. Não satisfeita passou a comer torrões de terra. Ah, meu Deus! Quem me
dera fosse apenas isso. Depois passou a comer pequenos cadáveres. Chorava me
implorando perdão, dizia que não era culpa sua, era coisa herdada. Primeiro
eram corpos mortos de coelhos, gatos, cachorros, cavalos. Até o dia em que
experimentou a carne de uma moça. Foi além, devorou a carne macia de um bebê.
Fui
visitá-la, como fazia todo entardecer desde que nos amamos pela primeira vez.
Havia sangue por todo lado. Ela me olhou triste-feliz-arrependida, confessou
que não foi capaz de se controlar. Cutucou o umbigo, primeiro no meio, depois
em volta, retirou aquela espécie de novelo-ninho-pintura abstrata que se
formava dentro dela. Comeu o próprio feto – meu primeiro filho, o primogênito.
Me calei. Ela me olhava faminta. Nunca tive medo, eu sabia que ela se
contentava em sugar meu sêmen, ele era um pouco da minha carne. No entanto, não
queria deixá-la furiosa, desde criança tive tendência a acumular sobras embaixo
da unha, isso me irritava. Agora essas sobras me salvavam a pele do sacrifício.
Anna não era ruim, só tinha herdado o vício nefasto de seus antepassados.
Ofereço
minhas mãos solícito. Ela agarra e rói minhas unhas com desespero. Ela traz o
pequeno espelho de moldura laranja no peito. Lá fora, eu posso enxergar os
emaranhados da videira e a tarde quente apodrecendo os bagos.