22 de fev. de 2012

Este mundo não foi feito para alguém tão bonito como você

Por Daniel Lopes


Ouvindo 'Sad eyed lady of the Lowlands', de Bob Dylan.


Quando eu conheci Ângela, ela tinha trinta e dois anos e eu tinha dezesseis, talvez dezessete. Havia dois dias que eu não comia nada de sólido. Estava tentando ser escritor numa cidade grande, mas tudo o que tinha conseguido fazer até então, fora escrever alguns poemas e trabalhar nos finais de semana num lugar imundo, com um banheiro nojento, chamado Caverna do Rock. Aquele era um lugar das trevas, várias pessoas já haviam se matado, ou matado alguém lá dentro. O que me lembro é que eu tinha uma camiseta do Van Gogh, uma bermuda e uma calça. No dia em que nos conhecemos, eu estava tentando dormir, já um bocado embriagado, num dos bancos duros da Caverna, quando ela chegou perguntando por uma tal de Aline, ou Amanda, ou algum nome assim. Falei que nem sequer imaginava quem era essa pessoa e aí tornei a dormir. Ela me acordou de novo. Parecia ter passado a noite numa daquelas farras que deixa as pessoas com olhar de peixe morto, ou peixe vivo... enfim, com uns olhos bem estranhos, tipo Modigliani. 
- O que você vai fazer hoje? 
- Hoje eu ainda não sei, por enquanto, estou tentando dormir. 
- Você não tem nada em cima aí não, tem? 
- Olha dona, tem dois dias que eu não como, porque não tenho dinheiro, daí a senhora já imagina, que, se eu tivesse alguma coisa em cima, não estaria numa situação dessas. 
- E essa camiseta?
- É a noite estrelada, do Vincent. 
- Eu sei porra, você gosta? É difícil um menino na sua idade gostar dessas coisas.
- Pois é, mas eu gosto. 
- Bom pra você. – Ela disse e acendeu um pensativo cigarro. Eu, do meu lado, já não conseguia dormir, porque ela era bonita. Fiquei lá deitado com meus olhos olhando pra ela, até que ela me perguntou: - Vem comigo, quero te pagar um café. Levantei num pulo e pedi pra ela esperar só mais um pouquinho, porque eu era um rapaz muito asseado e precisava escovar os dentes. 

Então nós entramos no carrão preto dela e andamos por uns trinta minutos até encontrar uma bela padaria, onde tomamos um opíparo café da manhã, com direito a frios, pães, frutas, geleia, suco, leite, café. Eu me fartei, porque tinha mesmo que encher o estoque da barriga, não sabia quando e nem de onde viria a próxima refeição. Ela me falou de livros. Disse que eu deveria ler o Ariel, de Sylvia Plath. Eu disse que queria ser escritor. Ela me falou de Joni Mitchel. Eu disse que estava aprendendo Bob Dylan. Ela me falou de Milton Nascimento e Frida Kahlo. Eu disse que tinha lido umas trinta vezes o Pequeno Príncipe. Ela me falou que eu tinha talento e tempo. Eu disse que tinha medo. Ela me disse que tinha um filho a quem não via havia uns cinco anos. Eu disse que ainda era muito jovem e que não era ninguém pra dar conselhos a quem quer que fosse, mas que ela devia ir devagar com as drogas. Ela sorriu um riso triste e disse que os sinos estavam enferrujados, mas que o natal estava chegando. 

E aí nós decidimos ir ao parque, caminhar um pouco e ver alguma exposição no museu de arte moderna. Eu concordei. E nós fomos, e foi um dia bonito, e ela pagou o almoço também, e nós conversamos mais um pouco, e parecíamos mesmo velhos conhecidos de mesma idade. No fim da tarde, ela me deixou na Caverna e me deu um pequeno beijo, sem língua nem nada e eu não pude acreditar que tinha beijado aquela mulher. Não mesmo.
***
Da segunda vez que encontrei Ângela, eu estava trabalhando como cortador numa confecção. Ainda não era o artista que imaginara na adolescência, mas já tinha escrito um pouco mais. Foi no final dos anos noventa e eu já conhecia algumas coisinhas a mais sobre arte, cultura e essas coisas todas, que são mesmo as únicas coisas que me interessam neste mundo escroto. Ela estava fumando outra vez o seu pensativo cigarro num ponto de ônibus. Era mesmo ela, mas tinha envelhecido um bocado e eu cheguei a estranhar que ela estivesse esperando o ônibus, afinal de contas, da última vez que nós havíamos nos visto, ela tinha aquele seu tremendo carrão. 
- Oi Ângela – eu disse – sorrindo aquele meu velho sorriso tímido de quem procura ser aceito. Ela ficou olhando meu rosto como se estivesse tentando se lembrar de onde me conhecia. 
- Não se lembra de mim? Perguntei.
- Pra dizer a verdade, até que me lembro, mas não sei de onde. E aí eu lembrei pra ela todo aquele episódio da Caverna do Rock... e do café da manhã... e do passeio... e do parque... 
- Nossa cara, você está diferente, agora é um homem. Está bem. Ficou um cara bonito. 
Eu disse que ela continuava linda. Ela sorriu e disse que aquilo era generosidade minha. Era engraçado, mas ao lado dela, eu sentia como se tivesse cinco anos, junto da primeira namorada, que nem mesmo namorada era, mas que eu amava, como um menino ama a Maria, mãe de Jesus. Perguntei se ela tinha tempo para um café. Ela disse que estava indo a uma reunião de narcóticos anônimos e não gostava de chegar atrasada. Insisti. Tudo bem só um café, ela disse. 

Na padaria, contou-me que tinha perdido o controle e todo o resto com as drogas. Mal tinha o dinheiro para o ônibus, contudo agora se sentia melhor. Havia quatro meses que não usava qualquer substância que lhe alterasse a consciência. Então ela sorriu meio de lado, como se estivesse se desculpando de alguma coisa e eu não pude resistir e ajeitei, com todo o carinho que as minhas mãos poderiam ter, os cabelos dela atrás das orelhas. Ela continuou sorrindo daquele jeito, como se chorasse por dentro, e eu senti um tremendo nó na garganta e fiquei com uma puta vontade de agarrá-la e beijá-la e dizer que a amava com todo o meu corpo e a minha alma e que ela não precisava mais ter medo, porque eu cuidaria bem dela pra sempre e ninguém nunca mais iria fazê-la sofrer, porque eu não deixaria. 

Entretanto nada fiz. Timidez, ou sei lá o que. Pra mim ela não era mulher, era quase que uma divindade. É muita pretensão sonhar casar-se com uma deusa. Nos despedimos de um jeito triste. Em silêncio. Eu tinha mesmo dentro de mim cinco anos. Nem sequer telefone trocamos. O ônibus levou ela embora. Havia luzes acesas dentro do ônibus e eu a vi passando pela catraca e ela me lançou um último sorriso. Do lado de fora do ônibus, onde eu estava, era tudo noite e só noite.

***


Quando encontrei Ângela pela terceira vez, mal pude reconhecê-la. Foi ela quem me abordou. Eu estava passando por uma praça no centro da cidade e quase não parei quando aquela mendiga tentou me segurar pelo braço. 
- Vai dizer que não está me reconhecendo?
Fiquei olhando aquele rosto sujo. Com aquela boca faltando alguns dentes. E só com muito esforço foi que consegui reconhecer alguns traços da Ângela que eu havia conhecido atrás daquela máscara de dor e mágoa. 
- O que aconteceu? - Fiz a besteira de perguntar. 
- Ó cara, nem me pergunte uma coisa dessas, por favor não me pergunte o que aconteceu. Aconteceram tantas e tantas coisas ruins. Mas você... você... graças a Deus... está ficando mais bonito a cada dia que passa! 
- Bondade sua. 
- Bondade nada... me conta... e as novidades... 
Foi aí que contei pra ela que agora trabalhava como tradutor e estava pra lançar o meu primeiro livro. Tinha me casado e meu filho estava com catorze dias. Não devia ter falado do filho. Seu rosto se tornou ainda mais dolorido e ela abriu devagar a boca pra dizer:
- Eu é que nunca mais vi meu filho. - O espinho prateado da rosa ensanguentada agora devia ser um homem. Pelo menos foi o que ela disse. 
Levei-a até um bar e paguei-lhe um lanche e um suco. Ela não conseguiu comer nem a metade da comida. Perguntou se eu podia dar-lhe algum dinheiro. Eu disse que, se ela quisesse poderia conseguir uma internação em alguma clínica de recuperação, ou coisa assim. Ela sorriu outra vez, aquele riso triste de sempre. Balançou a cabeça baixa e disse como alguém que já não tivesse mesmo a menor esperança. 
- Não adianta. 
Perguntou de novo se eu tinha algum dinheiro. Dei a ela uma nota de cinqüenta reais. Seus olhos brilharam. Ela apertou o dinheiro com força na mão direita e então me deu outro pequeno beijo na boca. Aí inventou uma desculpa e atravessou a praça quase que correndo. Não podia conter a ansiedade e o desejo da droga. Pobre Ângela. Eu atravessei a praça, entrei na catedral, ajoelhei-me e fiz uma prece por ela, e por mim, e por todos os desajustados desse planeta. Estranhamente, o beijo dela tinha gosto de camomila.
- Um fantasma com gosto de camomila. - Disse em voz baixa e sorri outra vez esse meu riso de quem deseja ser aceito.