Por Nilto Maciel
Ambrósio se impacientava na poltrona. Ia à janela, olhava a rua, os carros. O vizinho já teria chegado? Nem lhe sabia o nome. Irene, você sabe o nome do morador aí do lado esquerdo? A mulher destampava a panela, se aborrecia, largava a tampa sobre o fogão. Para que saber o nome dele? Ambrósio voltava à sala, sentava-se, trocava a novela pelo noticiário. O presidente viaja hoje para Berlim. Certamente o gorducho já tomara banho e jantara. Deu um salto e abriu a porta. Para onde você vai, homem? Conversar um pouco com o pançudo. Acionou a campainha. Ouviu o som áspero, um ai e arrastar de chinelos. Quem é? Seu vizinho. A porta se abriu e uma cara de cansaço se mostrou sobre um peito cabeludo e uma pança volumosa. Boa-noite, seu... Bonifácio estendeu a mão. Vamos entrar. Não, não precisa. Apresentaram-se, apertaram-se as mãos de novo, sorriram. Passado um minuto, conversavam, sentados um de frente para o outro. Bonifácio, nem sei como começar. Uma mulher apareceu à porta da cozinha. Vem, Sula. É o Ambrósio, nosso vizinho. A mão da mulher parecia fria ou molhada. O homem se disse todo ouvidos. O visitante esfregava as mãos, ora virava o rosto para a rua, ora para o peito do outro. O presidente viaja hoje para Berlim. Pois é, ele passa o tempo todo a viajar. A mulher pediu licença para se retirar. Precisava arrumar a cozinha. Ambrósio baixou o tom da voz: só queria saber se sabia do sujeitinho. Bonifácio arregalou os olhos. De que sujeitinho? A visita franziu a testa. O morador do quarto andar metido a galã? Não, não é homem. Nem sei como chamá-lo. Talvez seja um bicho. Não, não devia ser bicho. Bonifácio juntou as pernas, como se temesse um ataque à sua virilidade. Há dias vejo, no meu apartamento, um... Na verdade, não o vejo com nitidez. Só de relance, no escuro. O outro se afastou mais ainda do visitador, embora não houvesse mais espaço no sofá. Só podia estar sonhando. Ou conversava com um maluco? Vim saber se ele se escondeu aqui, porquanto há dois dias não o vejo. Bonifácio ofereceu água, café, suco, uma cachacinha. E sorriu. Aceitava, sim, água. Ultimamente sentia muita sede. O homem se ergueu e caminhou lentamente no rumo da cozinha. Olhou de soslaio para o outro, que examinava a bunda dele. Abriu a geladeira, retirou uma garrafa com água, encheu dois copos, sorveu com gula o líquido, engasgou-se, tossiu. Já estou indo, vizinho. Pode me chamar de Bró. Regressou à sala e entregou ao outro o copo. O presidente viaja hoje para Berlim. Pois é, o homem vive nos ares. Ambrósio bebia em goles lentos a água gelada. O outro pediu licença para se retirar por um minuto. E saiu pelo corredor. O visitante cravou com ímpeto os olhos nas nádegas gordas do anfitrião, que buscou socorro no quarto, onde a mulher repousava. Ele é doido, Sula. Não sei como nos livraremos dele. Doido? Você não está exagerando, Boni? Precisamos chamar a polícia imediatamente. Vou para a sala, tentar convencê-lo a se retirar. Enquanto isso, você liga para a polícia, os bombeiros, seja lá quem for. A visita observava a rua, pescoço ligeiramente torto. Não sei se já lhe disse, seu Ambrósio, está ficando tarde, precisamos acordar cedo. O senhor trabalha onde? O visitante não deu ouvidos ao outro. Então diga a verdade: o sujeitinho apareceu por aqui ou não? Basta me responder. Bonifácio esfregou as mãos no rosto. Não, aqui não esteve ninguém nos últimos dias. Mas não se trata de alguém, eu já lhe disse. Talvez não passe de uma sombra. Pode ser visagem, visão, fantasma. Não acredito nisso. Pode ser um ser extraterreno. Não creio, embora tudo seja possível. Pois como pode um ser aparecer e desaparecer de repente, sem deixar vestígios? Bonifácio coçou a orelha. Como já disse, nunca o vi de perto, de frente, cara a cara. Ele se apresenta por um segundo e some no mesmo instante. Talvez não passe de meio metro. Na verdade, disso não tenho certeza, porque só o vejo no escuro ou no semiescuro. Nunca quando a luz está acesa. Está sempre pelos cantos, se escondendo, se esgueirando. Foge à socapa. Só falta me deixar zuruó. Corro para lá e para cá, fico tonto. Se assim continuar, logo estarei na berlinda. Bonifácio por pouco não perdeu a respiração. Não precisa ficar nervoso ou com medo. Ele não ataca, não é violento. Nem sequer fala. Deve ser mudo. Na verdade, não é um ser vivo como nós, porquanto não se alimenta, não urina, não defeca. Nunca vi um só resquício de comida, fezes ou urina pela casa. A não ser que faça tudo isso em outro apartamento, nas ruas, nos buracos onde deve se refugiar. Certamente não anda por aí, porque, se o fizesse, já teriam noticiado. Todo dia vejo e escuto os noticiários. Nada de seres estranhos na cidade. Só falam da viagem do presidente à Alemanha. Que diabo ele vai fazer lá, você sabe? Não, não tenho a mínima ideia. Ouviu-se a voz de Sula, no quarto. Não posso falar alto. Não estou ouvindo nada, senhora. Fale mais alto. Quem está doido? Bonifácio aumentou o volume da voz. A Alemanha é um grande país, não é, seu Ambrósio? Eu já lhe pedi para me chamar de Bró. Está bem, está bem. Mas precisamos ir dormir. O visitante fez ouvidos de mercador. Ele parece não ter sono também. Se o faz, é onde se oculta, porque vasculho a casa toda antes de ir para a cama e nada de encontrar o diabinho. Você disse diabinho? É maneira de falar. Ele não deve ser mau, pois, se o fosse, já me teria matado. E se mexeu no sofá. Boni, quero ir ao banheiro. O homem encarou, com espanto, o outro. Então vá ao banheiro de sua casa. Não vai dar tempo. Se bebo água, sinto vontade incontrolável de urinar. E se levantou com rapidez. Onde fica o banheiro, homem? Os dois saíram no rumo do interior do apartamento. É aí. O visitante entrou e fechou a porta. Bonifácio correu ao quarto, apavorado: Chame logo essa polícia lerda, Sula, antes que ele me deixe doido. O outro abriu a porta e ouviu as vozes ásperas do casal. Estão brigando? Não, nada disso. Apenas comunicava a sua retirada. Ainda não, porque acabo de ver o bichinho. Ele escapuliu pela janelinha do banheiro. Ora, ele se escondeu aqui, o danado. E com o seu consentimento. Bonifácio se irritou. Fosse já embora, se não quisesse apanhar. Ora, ora, ora. Apanhar de você, com essa barriga gorda, essa pança? E abraçou o outro, a rir. Reatemos a nossa conversa gostosa, amigo velho. E saiu em direção à sala. Como eu lhe dizia: ele é inofensivo. Você sabe disso, pois agora frequenta a sua casa também. Ou você ainda não percebeu? Bonifácio parecia transtornado, olhos arregalados, boca a espumar, coração desenfreado. E agora, como vou me livrar deste maluco? Se a polícia não chegar logo, nem sei o que fazer. Pelo visto, este doido vai querer passar o resto da noite a falar maluquices. E Sula no quarto, sem conseguir se explicar para a polícia! Meu Deus do céu! Eu o vi pela primeira vez numa noite do mês passado. Fui ao banheiro (sempre vou ao banheiro, pelo menos umas dez vezes por dia) e, ao me aproximar da porta, vi aquela figura parada no meio do quartinho ao lado, aquele ao final do corredor, contíguo ao segundo quarto. Súbito a figurinha se moveu e se enfiou no escuro, como se fugisse de mim. Parece ter se assustado comigo. Nem fui urinar. Passei ao quartinho e corri atrás dele, quase a me mijar, atravessei a outra porta, saí na área de serviço, entrei na cozinha, voltei à sala, corri pelo corredor e me enfiei no banheiro. Não tive medo, mas curiosidade. E nada falei para Irene. Quem é Irene? Ela é muito nervosa, cheia de superstições. Aliás, não sabe ainda de nada. Nem sabe por que estou aqui. Você não vai ligar a televisão? Precisamos saber se o presidente já está em Berlim.
* Este é o segundo conto da primeira parte do livro Luz vermelha que se azula, de Nilto Maciel.