Por Assis Coelho
Aqui
estou novamente sobre esse sofá macio e cheiroso depois de longo tempo
vagando pelas ruas. Ainda fica mais gostoso quando me encosto no colo farto de
Zuleica, a gorda, não a cabeleireira magricela que me expulsou de seu
salão por achar que eu afugentava seus clientes. Não entendi, sempre tive
fama de bom companheiro. Voltei para as ruas.
Comecei
a rondar a casa de uma senhora gordinha e simpática. Não foi fácil a
aproximação. Passava, depois de meus périplos infindáveis, em frente àquela
casa tão limpa por fora e imaginava como seria por dentro. De início, olhares
de sondagens. Em poucos dias, o convite para entrar que aceitei sem hesitações.
Ai começou a vida que todo malandro gosta, mordomia sem agonia. Comida especial
em prato reservado, banhos perfumados e até penteados. Logo esqueci a
convivência selvagem das ruas onde tinha de disputar com os mais fortes comida
e bebida. Quase sempre eu saía perdendo, a não ser quando, raramente, eu
encontrava um mais fraco do que eu. Na verdade, nunca gostei de disputa, nem
quando andava pelas ruas em bandos dividindo uma só amante sem nenhum critério
de escolha. Tempos ruim, nem gosto de me lembrar. Hoje não disputo nada. Durmo
onde quero, preferencialmente, no sofá em frente à televisão, que também parece
ser o local predileto de minha companheira. Tenho sonhos horríveis das
perseguições que já sofri nas ruas. Trago escoriações que relutam em
desaparecer. Hoje elas são amenizadas pelas mãos carinhosas enquanto assistimos
a seção da tarde e, em seguida, as novelas que deixam minha companheira chorosa
e mais gulosa, é quando nos empanturramos de biscoitos e salgadinhos. Certa
noite, talvez obedecendo a um velho instinto, quis sair e me esbaldar pelas ruas,
becos ou entrar por qualquer porta escancarada. Logo no primeiro beco, um bando
de malfeitores me fez voltar esbaforido para o meu refúgio tranqüilo. Não
voltei ileso, as escoriações voltaram, dessa vez, mais doloridas. È o preço que
se paga por querer liberdade demais, não saber ficar na quietude marasmática. Tudo
ia tão bem quando minha companheira trouxe outro pra casa. Era um tipo mais
novo e cheio de manhas, até brinquinho na orelha. Foi logo se apossando do colo
amado. Começou a usar meus pertences sem a menor cerimônia. Tudo agora girava
em torno desse trastezinho. Até na boca minha companheira ousou beijá-lo na
minha frente. Aí foi demais pra mim. Pulei em cima dele e mostrei a ira de um
ser traído. Talvez tenha exagerado, pois aquela que me tratava tão bem me
trouxe direto para este canil fedorento. Voltei para o verdadeiro mundo cão!
Este conto foi inspirado no
conto “Ela adorava meus olhos verdes” do escritor cearense Nilto Maciel.
Bsb,
24/11/2011
Assis Coelho é autor dos livros de contos Labirintos e
Homens
de Fumaça e do romance Lima Barreto,
um caminhante libertário Ed. Baraúna. Premiado nos concursos da ASEFE
1999/2000. Participou da Coletânea Candanga publicada pela Academia de Letras
& Artes Populares de Ceilândia.