Por Márcio-André
aqui do estômago desta baleia
a cidade é um cardume cintilante
e
a estátua de Drummond tem as costas ao oceano –
[as estátuas são para os homens não para o mar]
cultivar um peixe por dentro
para um dia comê-lo
esperando uma mulher surgir da precisão da ossada
um dia somos felizes em nosso jardim cetáceo
e ela caminha suavemente ao meu lado
sonhando o domingo mais triste do mundo no subúrbio do lado de lá
um dia estamos na meia idade e bebemos porque não há opção
e o guindaste no cais estará esmagado como um inseto morto
diante das mil falhas na goela das águas
o mar está na foto dos homens não no sonho das estátuas
:sua voz através do mar é o próprio mar em travessia
Chamamento remoto
De mulher equilibrada nos rochedos
é também credível viver fora dos peixes
dentro de um farol no extremo das docas
e nos encontramos agora
mais por memória das marés que por limite do acaso
:o mar está entre nós e por isso nos une:
a mesma palavra que cabe em minha boca
cabe na dela
:em sua boca cabem todos os oceanos:
lua-lâmina-omoplata
o cão de porcelana desfeito na porcelana da constelação
ou esta água pesada nos coágulos da luz
ali onde da matéria mole do sol
se forjam estrelas
cheguei a idade que um dia sonhei ter
mas o sonho não resistiu a idade
aqui nesta terra-longe
antecidade ante tudo o que foi feito
[há lugares que esquecem de se atualizar segundo os mapas]
os imortais cunharam homens
para ver um mundo por seus olhos
mas a vida inteira temos esperado por algo
no outro lado da vida inteira
das realidades possíveis só percebemos esta
onde todos já vêm com encaixe para alguma máquina
sistemas são subversíveis –
subvertamos agora os astros que não pertencem a nós
[a língua:
astrolábio de céu da boca]
o desfibrilador é antes uma relíquia verbal
que um aparato do esqueleto
o tempo na palavra
tudo que era primeiro moveu-se no verbo
mesmo a bomba cardíaca e seus vasos sanguíneos
é nele que as coisas despertam
e então a língua-que-não-diz
o silêncio
confere a física de cada mundo
o corpo está mais que em volta da espinha
o corpo fabrica um lugar a cada estrela que ganha nome
[o albatroz retém a alba no corpo]
mastigar a palavra
como se mastiga um coração
da válvula às aurículas
cada palavra é um sacrário
um desígnio
um destino
Márcio-André nasceu em 1978, no Rio de Janeiro. Com um trabalho que vai da poesia ao pensamento, passando pela música concreta, a arte digital e a performance, tem sido uma referência internacional da literatura e da poesia experimental. Figura em diversas revistas e festivais pelo mundo, assim como em importantes antologias da nova poesia brasileira, e seus poemas foram traduzidos para oito idiomas. Com Ferreira Gullar, Maria Bethânia, Zeca Baleiro e Edu Lobo, leu poemas para o documentário “Há muitas noites na noite”, de Silvio Tendler. Em 2007, fez um recital solitário nos escombros da cidade fantasma de Pripyat, em Chernobyl, tonando-se o primeiro poeta radioativo do mundo. É editor da Confraria do Vento e curador do evento "Cidade aTravessa: poesia dos lugares". Atualmente vive em Lisboa.