Por Ricardo Novais
"Dedico este conto ao repertório da pungente sociedade brasileira".
Ronaldo é um jovem recém-formado do curso de engenharia do petróleo. Tem boa carreira na cidade grande, coração de pedra, onde mora, sozinho, em belo apartamento na zona sul. Seu comportamento, o leitor já adivinha, é o típico da geração pré-sal; às vezes vazio em meio a tantas ideias, às vezes tomado pelas mãos de julgamentos alheios. No lazer, encasula-se em manto de coligir efemeridades. Ele é um colecionador de aventuras, fugaz como beijo de nuvem.
Noutro dia, Ronaldo quis curtir a noite. Balada boa. Mas em casa de muitas cores, nenhuma tonalidade coloriu seu espírito empreendedor. Então bebeu. Bebeu sem moderação. A madrugada caiu pesada na cidade grande; nenhuma palavra suspira, toda palavra sonha. O jovem engenheiro, em seu intrincado caminho de volta para casa, desvia-se à rua do parque municipal e depois à rua do clube de jóquei.
- Oi... Meu nome é Ronaldo...
- Prazer, gato. O meu é Madeleine...
- Entra logo no carro, porra!
Fugiram. Aportaram em destino certo, embora oblíquo. Dentro do apartamento, o sono não entrou. Lá só entrou o álcool cortante, a farsa dissimulada e o amor cínico. Assim foi. Ainda não havia chegado a fulgurante alvorada, Ronaldo deu um salto da cama, horrorizado:
- O que eu fiz, meu Deus?! – exclamou num grito de pavor olhando para a figura corpulenta e efeminada que estava dormindo embaixo de seus lençóis.
Ele caminhou a passos miúdos até a sala. Quase de tudo paralisado, más vozes vieram a perturbar-lhe o funcionamento cerebral. Na tentativa de aquecer um pouco a friagem d’alma, serviu-se de uma boa dose de uísque, depois outra, e bebeu a garrafa toda. Chorou. Chorou muito. Riu. Riu consigo e de si. Ronaldo poderia colecionar a mulher que quisesse nesta vida; loira, morena, secretária de multinacional, modelo de capa de revista, mas calhou de naquela noite ele amar logo uma moça extravagante, que roncava varonil no quarto ao lado. Ultrajante, ele julgaria a isto mais tarde.
De repente, sob o carpete elegante da sala, o engenheiro conjecturou que era preciso fazer alguma coisa para não ser descoberto como degenerado. O pai o deserdaria. A mãe igualmente o renegaria. Fatalmente seria despedido do emprego. Começou a ter fortes devaneios, que já beiravam alucinações, quando pensou em Aline; a noiva certamente lhe devolveria o anel de noivado por causa da aventura pérfida do lusco-fusco. Neste pensamento, entretanto, o coração apertou. Olhou para a sacada do prédio. Quis ir até lá; ébrio, tropeçou no carpete refinado da ante-sala. Cambaleante, conseguiu abrir a porta de vidro. Copo de uísque à mão, ele chegou ao parapeito e baixou a cabeça. Teve tontura. O copo estilhaçou-se ao chão. Cortou o pé. Outra vez no parapeito, olhou para baixo. Acometeu-lhe nova tontura. Bêbado que estava, desequilibrou-se. A cena foi patética. Nu em pelo, dependurou-se no suporte do parapeito. Sentiu a gélida garoa da madrugada e o vento talhante percorrendo-lhe à espinha. Os dedos machucados foram cansando e escorregando sem conseguir mais se agarrarem à barra do suporte. Tamanho esforço, ele deu um grito de pavor e...
Grande foi o estrondo que se escutou no contíguo de baixo. O prédio iluminou-se quase todo. Pouco momento, o dono do apartamento atingido apareceu. O vizinho mal pode acreditar ao ver um homem nu estatelado no piso de seu deck de churrasco. Ronaldo balbuciou:
- Por favor, só me leve pra casa...
Acordou na emergência pública. Pobre diabo! Toda a família foi ao hospital. A voz do síndico se fazia ouvir do corredor. A história ecoava por todos os leitos moribundos. A primeira visita que o engenheiro Ronaldo recebeu foi a do doutor delegado.
- Que houve, jovem?
Não houve resposta.
- Veja bem – explicou-lhe então o comissário policial –, o teu pai diz que algum meliante tentou te matar...
- Quê?! – o doente quase deu um salto do leito arrancando o soro-fisiológico da veia do braço direito; o esquerdo não aceitava glicose.
- Acho que você caiu da sacada...
- Eu estava bêbado!
- Tua mãe diz que assaltaram tua casa... Foi sequestro relâmpago?
- Não! – Ronaldo gritou. – Não quero falar sobre isto!
- Mas o que aconteceu? – insistiu a autoridade.
Silêncio constrangedor.
- Prendemos uma... – o delegado sorriu sutilmente antes de dar a notícia deselegante – Prendemos uma moça no teu apartamento... Quem é ela?
Mudo como teto de casa de misericórdia, ele virou-se para o travesseiro solicitando que o comissário saísse. Nada mais ele disse. Creio que eu já lhe tenha dito, amiga leitora; Madeleine ficou encarcerada. Ronaldo teve alta no dia seguinte.
Passou-se o tempo de abraço distante. Inquérito policial foi instaurado. Familiares de vários rincões da república souberam das novidades, chocaram-se. Ainda hoje amigos divertem-se, duvidam ou têm certeza. A chefia do jovem de promissora carreira quis na ocasião explicações sobre a confusão, mas tão logo esqueceu o assunto. Porém os vizinhos desenrolaram quilômetros de língua. Madeleine morreu na cadeia. Ronaldo mudou-se de prédio e seguiu com suas coleções.