12 de jul. de 2011

Saídas


Foto de Roberto Linsker, 23.04.2010.


Por Geraldo Lima

A vida se esgarça.

Fio a fio, vai se perdendo nos longos corredores dos anos. Dos ministérios. Sem surpresas, sem glória, sem tesão algum. Agora, o destecer é bem mais ágil e sutil que o tecer, — o ato meticuloso do artesão invisível. Pouco ou nada resta ainda para se desfazer: menos de um ano, talvez, e esse trabalho corrosivo dará cabo do espírito e seu estojo de desejos.

Devo correr contra o tempo, não é assim que se diz?

Alguém que tenha uma doença incurável deve, sem dúvida, nesse curto espaço de tempo que ainda lhe resta, sugar das tetas da vida, avidamente, todo o líquido-prazer que ela possa liberar.

Ou não?

Por acaso o aconselhável seria que essa pessoa se recolhesse a um santuário, a uma gruta, a um lugar ermo, inóspito, para que o seu espírito pudesse elevar-se cada vez mais até tocar as franjas do Criador?

Prazer e recolhimento. Carne e espírito.

Às vezes, pensar em tudo isso, nessas possibilidades todas, nessa oferta de inúmeras portas, passagens, labirintos, ah, pensar em tudo isso me desespera, me aflige tanto que o meu desejo é simplesmente ceder aos apelos da primeira tentação. A mais cômoda. A que não me obrigará a dar intermináveis explicações.

Ninguém aqui na seção sabe, nem desconfia, mas preparo meticuloso e sádico o dia da dor infindável. O destempero. Aquele momento que, perplexos, todos definem como inexplicável, abominável, tal a violência da sua alegria e da sua crueza. Remorso algum diante das lágrimas de espanto e desespero. Mutiladas, as palavras já não farão sentido. Estaremos incomunicáveis. Intransponíveis. Tão sozinhos dentro do labirinto de nossa tristeza heroica que será como se o mundo se inaugurasse nesse instante, um fiat lux iluminando o caos. Andarei nu nessa manhã de escombros, sem nada mais para afrontar.

Quem espero assombrar com meus voos rasantes? Essa gente que aqui trabalha, sem sobressaltos, afeiçoada à rotina, e sem jamais suspeitar que a vida é um imenso buraco que, em nome da normalidade e da razão, devemos encher sempre de miudezas, futilidades, grandes feitos, bobagens, trivialidades, momentos inesquecíveis, fodas memoráveis, papéis, pastas, números, carros, viagens etc. etc. etc, e que, no momento em que nos recusamos a cumprir esse ritual cansativo e burocrático, a morte se apresenta ávida e imbatível?

Mas posso estar equivocado. Devo estar subestimando a perspicácia dessa gente: todos, com certeza, têm pleno conhecimento da existência desse abismo, le néant, e é por isso que se agarram a esse ritual de futilidades, a essa liturgia, a esse cânon, a esse falar de coisa alguma. Por isso estão felizes em sua ilha. Diluídos no rebanho. E eu os observo, junto à janela, com meu olhar doente e amargo. Súbito, apanho o paletó e digo — Vou dar um giro por aí. Saio sem que ninguém se digne de responder ou indagar aonde vou. Ignoram minhas novas manias, meu desassossego, minha vontade de voar pela janela e aterrissar no canteiro florido neste mês de setembro.

Meu olhar, de uma maneira inédita e ousada, pousa nos sacros seios de Inês, a mais recatada das mulheres que trabalham nesta seção. O diabo é que nem decote ela usa, e é preciso imaginar o que está dentro, os pomos maduros, suculentos. Isso só envenena a imaginação. Seios intocáveis, pode-se deduzir facilmente. Ela vive protegida, segundo a segundo, pelo glorioso manto da fé. Recato e silêncio. Distante sempre das conversas obscenas, da lascívia, muito, muito perto de Deus, deixando escapar, vez ou outra, um oh Jesus! Pois os seios dela é que eu quero tocar agora. Tocar e morder. Sugar o leite que ela reserva pura e convicta para o único homem que Deus lhe destinará. Não sou esse homem, tenho certeza, mas desejo ardentemente isso que, por vontade divina, não me pertence. Quero e o exijo para mim. Danem-se as suas convicções, os seus princípios! Eu, minha caríssima Inês, já não os tenho. Que me importa que você, diante dos meus olhos flamejantes, pense estar vendo as feições corrompidas do Anticristo? Quero seus peitos e sua linda bocetinha inviolável, ouviu, Inês? Acha que estará a salvo lendo o tempo todo essa sua bíblia gasta e incompreensível? Eu vou romper todas as suas barreiras, vou penetrar em seu território guardado por salmos e fervorosas orações. Seus seios arfam, Inês, eu sei, eu sei, é de tesão e terror, pois você já percebeu, em meu olhar insistente, o desejo que não recua diante de nada. Pobre Inês, tão inocente e tão apetitosa. Diante aí do computador, fria e insondável, protelando o que não está escrito nos textos sagrados, mas que vai acontecer, como um cataclismo, por força não sei do quê.

Devem pensar que estou louco, pois meus modos têm se alterado significativamente nos últimos meses. (Não fiz parte durante muito tempo do rebanho cordato e feliz?) É que cansei de encher o imenso e insaciável buraco da vida. Saulo tem dito abertamente que estou jogando na lata de lixo tudo o que construí com esforço e dedicação. — Tão perto da aposentadoria, e você se destrambelha desse jeito, cara?

Quando bebemos, nossa alma acha de escorrer para fora, mostrar-se inteira, nua, imprudente. Agora sabe de minhas intenções suicidas, meus desejos inomináveis. Digo pra ele, querendo ampliar o abismo que cavo diante dos seus olhos, — Rapaz, estou pronto para o adultério. Quando vou à janela (e faço isso inúmeras vezes ao dia), seu olhar me acompanha, querendo flagrar, talvez, o momento do salto.

Ah, Inês, Inês, que vontade de beijar a sua nuca!

Chego perto dela, enquanto trabalha no computador, digitando intermináveis documentos, e sussurro que ela é muito eficiente, que está perdida nesta ilha de incompetência e futilidades. Falo bem junto ao seu ouvido para que sinta o hálito quente e insano que carrega cada uma das minhas palavras para dentro da sua alma. Inviolável. Segura. Inatingível. Deus é fiel. O manto do Criador envolve o seu corpo e o seu espírito, e cada uma das minhas palavras cai por terra, vencida. Poderia morder logo o seu pescoço, apertar seus peitos túmidos, inaugurando de vez o dia do destempero, do caos absoluto. Mas um restinho ainda de razão cerra meus dentes e ata minhas mãos.

Longas, longas jornadas através dos corredores do Ministério em busca do inefável. Subo e desço escadas, embarco inúmeras vezes no elevador, sem destino certo. Salto às vezes no quarto andar sem ao menos saber se me interessa ir a alguma seção. Decido assim de última hora entrar na Seção de Pessoal. Do fundo da sala vem um ih, lá vem ele de novo, que faço de conta nem ter ouvido. O Nestor, a quem conheço há anos (entramos quase ao mesmo tempo no serviço público), olha-me por sobre os óculos de velho burocrata. — Achou o que procurava, meu velho?, indaga-me com certa seriedade que, tenho certeza, logo se afundará no rasgo de um riso maldoso. — Aquilo foi uma visão, não pode ter sido real, respondo da maneira mais racional possível, pois quero que todos saibam que estou em meu juízo perfeito.

Sem que me ofereçam, puxo uma cadeira, sento-me, distraio-me folheando uma revista. Folheio e logo me canso. Ando tão sem paciência e concentração nos últimos tempos que o mínimo esforço repetitivo já me enche de nojo e ira. Pouco a pouco, chega aos meus ouvidos, vindo de um passado que não desgruda nunca da memória, o tec tec de alguém, ágil e febril, datilografando na Olivetti manual sem olhar para o teclado. — Lembra, Nestor, quando chegaram as primeiras elétricas? Que euforia! Como a gente ia saber que um dia íamos estar assim, nessa comodidade toda? Que tempos heroicos, não é, Nestor? Papel carbono, corretivo, fita, tabular... Ah, essa gente nova não sabe o que é trabalho! Você concorda, Nestor? Mas Nestor já não se encontra mais lá: a cadeira, repentinamente vazia, tem, ao mesmo tempo, um significado pungente e irônico: é como se ele nunca tivesse estado ali. Nestor, assim como tudo o mais aqui, não existe. Todo esse tempo, foi apenas ilusão, uma imagem que nos atravessa sem deixar rastros e reverberações. Ainda tento me fazer notar, mas, diante da indiferença geral, digo — Não quero atrapalhar o serviço de vocês, e saio, sentindo às minhas costas a navalha do riso da corja toda.

Sim, deve ter sido só uma visão, do contrário, como então se explicaria a beleza incomum daquela mulher? Estava tão envolta na luminosidade da sua carne, da sua alma, que não tenho a mínima condição de detalhar suas feições. Era pura luz. A única hipótese à qual me agarro, para não me sentir um louco, é que ela não pertencia a este mundo.

Era ainda o princípio do meu desassossego. Os primeiros sinais de esgar e dor já afloravam em meu rosto. Mas não havia pousado ainda os olhos nos seios de Inês, tampouco criara o hábito de me aproximar tão insistentemente da janela do quinto andar. Chegava regularmente cedo em casa, ainda que houvesse, inconfessável, o desejo de estacionar em algum boteco da Asa Norte e esquecer-me de tudo. Esperava com impaciência e um certo temor a chegada da aposentadoria. Nunca, nunca havia aberto o jornal em busca de sexo pago. E, como a maioria dos mortais, ainda me sentia seguro junto ao rebanho.

Naquela tarde, porém, minha tosca existência foi tragada de vez pelo redemoinho do inexplicável.

Vi a mulher brotar de uma seção no quarto andar, como se saísse de um filme ou de um sonho, e sua luz cegou-me completamente. Quando passou por mim, ainda tentei balbuciar qualquer coisa, mas a língua estava dormente, pesada, e a boca, seca e vazia.

Ainda atordoado, pus-me a segui-la. Ela desceu a escada com tanta pressa e agilidade que quase a perdi de vista no terceiro andar. Dobrou a quina do corredor como se fosse descer a escada ou pegar o elevador, mas desapareceu como num passe de mágica.

Não é possível que tenha descido tão rápido assim a escada, nem pegado o elevador, que eu não pudesse alcançá-la mais adiante. Perguntei ao ascensorista sobre a mulher, mas o infeliz, com a indiferença e a frieza dos que trabalham sempre contrariados, negou tê-la visto. Lá embaixo, no térreo, obtive a mesma resposta do pessoal da recepção. Voltei correndo até o segundo andar, entrei em todas as seções indagando sobre a mulher, diante do espanto das pessoas (ah, meu olhar era uma câmera alucinada e delirante, mas não me dava conta disso; para mim, toda aquela busca frenética era plenamente explicável).

Por fim, esgotado, retornei à seção e passei o restante da tarde junto à janela com o olhar perdido na paisagem que tentava apagar os derradeiros tons cinza do inverno.

Faz quatro meses que tudo isso aconteceu, e não há um dia sequer em que eu não saia e percorra todos os corredores, todos os andares, todas as seções, na esperança ainda de encontrar aquela mulher. Talvez ela pudesse me salvar, repito para mim mesmo, tentando justificar essa esperança acesa, intranquila. Sei que sou motivo de chacota em todo o prédio. Dizem, à boca pequena, que não estou em condições de continuar trabalhando, e que o mais sensato seria me aposentar logo. Sei que em casa a dor se alastra: erva daninha crescendo sobre os lençóis, enchente devorando as margens do rio onde até então nos banhamos felizes, seguros. — São esses livros que você lê, Baltasar, não faz outra coisa quando está em casa, acusa a minha esposa, os olhos vermelhos e as olheiras denunciando a dor e a solidão em que tem estado mergulhada.

Mas o abismo já está cavado: o gesto irrefreável arma seu voo cego, insensato. Enquanto a mulher não volta, ou eu a encontre por aí, num shopping ou num bar (lance mágico perpetrado pelo destino), planejo tomar de assalto a fortaleza dos seios de Inês.


* Publicado, originalmente, na antologia Todas as gerações – o conto brasilense contemporâneo, org. por Ronaldo Cagiano, LGE Editora, 2006.