13 de jul. de 2011

Escrita: um sentimento de não estar no mundo - Malagueta # 15

Por Marcia Barbieri

Saio à rua irritada, faz dias, a vida inteira talvez, que procuro alcançar a palavra exata e a única coisa que consigo é me atrapalhar com meus dedos confusos. Ando pela minha cidade e me sinto só, tão só como em qualquer outra cidade desconhecida. A literatura me consolaria, se fosse possível agarrá-la, cortar-lhe o bucho, dissecá-la. Discordo de muitas coisas que Schopenhauer afirma sobre o ato de escrever, entretanto, uma delas é fascinante e me parece tão real agora: "[a escrita] é como uma batida de caça em que a presa foi previamente cercada e encurralada, para depois ser conduzida a um outro lugar igualmente cercado, onde não pode escapar ao caçador, de modo que agora se trata apenas de apontar e atirar."[1]

Continuo minha caminhada entre tiros de festins. Num cruzamento me surpreendo com um lindo cão negro. Ele corre atrás do próprio rabo, briga com outros cachorros, se assusta com as pessoas, atravessa na frente dos carros. Não, não era um cachorro de rua. Caso fosse um cão vira-lata ele não se comportaria de tal forma, era nítido que ele não se sentia dono daquele espaço, com toda certeza passou a vida toda enjaulado. A literatura é um pouco isso: um cão negro de coleira enfrentando a vastidão da rua. É um sentimento estranho de não pertencimento, estando em todos os lugares não pertencemos de fato a lugar nenhum. Tendo o mundo inteiro para retratar poucas coisas nos são dadas.

Não acredito que esse sentimento de deslocamento e impotência seja um entrave para a criatividade, ao contrário, esse sentimento pode proporcionar o encontro raro com o literário. É evidente que vivemos em uma época em que a emoção está em baixa, todos exigem racionalidade e existem até alguns que dizem que precisamos de novos temas, pois os temas sobre a condição humana já não se mostram interessantes ou eficientes. Não há diferença entre um escritor e um engenheiro. Concordo que o escritor precise trabalhar com a linguagem, mas não creio que ele não possa se enrodilhar aos seus escritos. Cortázar fala sobre a mistura de elementos no romance, no entanto, eu iria mais longe, acho que essa mistura é válida para qualquer gênero literário: "Mas ele é o romance, a coisa impura, o monstro de muitas patas e muitos olhos. Tudo ali vale, tudo se aproveita e confunde." [2]

Esse tipo de escrita me arrebata, que é mentira, mas cheira a verdade, fingindo ser verdade, esquece que um dia foi ficção. Embora aprecie essa mescla de vida e literatura e, parafraseando Kafka, tudo que não é literatura me cansa, acho ridículo autores (ou pretensos) que no intuito de legitimarem seus escritos fingem outras vidas, imitam a biografia de escritores consagrados, como se isso fizesse deles grandes nomes da Literatura. Sendo alcoólicos nunca colocaram uma cachaça na boca, sendo beatniks nunca saíram da sarjeta de suas casas, sendo mulherengos nunca comeram ninguém. É preciso ter consciência que a escrita é algo sagrado, apenas um mergulho profundo pode trazer algo valioso à tona, a maioria das vezes afundamos antes de emergir. Escafandristas mortos, é o que somos.

Apesar das dificuldades, eu continuo. Tento escrever na solidão do meu quarto, no entanto, espero que me perdoem, acabo me distraindo e me dou por satisfeita dando voltas e voltas em torno do meu rabo.



[1] SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever.

[2] CORTAZAR, Julio. Valise de cronópio.