30 de jul. de 2011

O Galo

Por Vicente de Paulo Siqueira

I

Fiquei olhando a caixa, pensando no gato de Schrödinger, pensando um punhado de coisas, que ali podia estar um bicho morto, uma brincadeira qualquer. O gato de Schroedinger... E se a luz se acendesse dentro da caixa... o martelo acionado, o gato ganhado existência para além da conjectura, saltando para o real... Nada, só a caixa muda. A sandice de minha irmã era apimentada pela maldade e nunca se confundiu com ciência nenhuma. Escutei um cacarejo breve, abri as abas, o galo estava horas ali paralisado. Rosilene disse que minha irmã tinha deixado a caixa cedo, sem comentar nada. O bicho continuou imóvel por uns instantes, então foi se levantando aos poucos e saltando para a borda da caixa, que tombou com seu peso. Poxa... minha irmã podia ao menos ter ligado, não ter mandado o bicho assim... Entrei e esqueci o galo. Fui tomar banho, assistir televisão...

Não sei se ele dormiu nem como é sono de galinha, sei que cedo escutei o canto rouco, tímido, que quase não se repetia. Rosilene cuidava dele, da comida, de tudo, e nos dias que ela não vinha, fazia eu essas tarefas. Por que o senhor não arruma uma galinha? Ele é muito bonito. Merece. Ela se envolvia com o galo, dizia que ele não era igual aos outros, que não era um galo normal. Dias depois, vinha com a conversa de que o galo falava. Tá doida, Rosilene? Não... Ele fala... E minha irmã ainda falou para ela que o galo era doido. Doido... Eu nunca vi nenhum galo, nenhuma ave doida... Achava que a doidice de minha irmã afetava o galo e Rosilene. Passei a observá-lo, cantava em cima do espaldar da cadeira de ferro, deitava-se no chão a sacudir terra sobre o corpo, ficava parado debaixo do céu, esticado, olhos arregalados, as penas vermelhas do dorso e do pescoço contra o cinza do resto do corpo... Vi que um ar estranho o envolvia, não era ar de galo... Eu não queria acreditar, o galo falava com o corpo, com as penas... fragmentos de ideias, coisas de filosofia, física, frases às vezes claras e muitas vezes ininteligíveis, sem quase nunca haver continuidade entre elas. Este é o marco, aqui começa tudo de novo. O futuro já parece velho. Silêncio, sol, abismos... O quê? O cigarro queimava entre meus dedos. Consegui juntar essas palavras... Ele ergueu mais o pescoço, bateu de leve as asas e soltou um canto afinadíssimo. De repente falava de antimatéria, origem do mundo, tudo misturado... Ouvia o eco das frases na memória, o galo pensava e falava, sem o mecanismo da fala, exalava palavras. Lembrei de histórias de frangos de macumba, da galinha que meu pai contava ter pegado numa encruzilhada e levado para casa... Disse que a trancou num quarto e quando abriu depois a porta não havia mais nada. Tudo deve ter vindo de um conceito, uma fórmula-frase inscrita no antes de tudo, e a grande explosão...

Passeava, ciscava, aproximava-se, soltava aquele cacarejo breve, agitava a cabeça, movia o ar com os olhos tão atentos... O existir é o lugar do paradoxo, não sei mais o quê, não sei mais o quê, não sei mais o quê. Não contava isso a ninguém, nem com Rosilene eu comentava, embora ela continuasse ouvindo o galo falar e dissesse que ele conversava melhor que gente. É não, Rosilene... É porque ele é o galo de Schrödinger... O quê? Nada, não Rosilene... As frases do obscuro animal faziam-me lembrar de coisas que eu tinha visto em programas de ciência, que lera em revistas, a teoria de tudo, o pluriverso, Hawking, coisas que estavam soltas em minha cabeça, que nunca chegavam a constituir um conhecimento mesmo. Eu via, ouvia, e não cria, tentava a um só tempo ignorar e prestar atenção nas falas de Rosilene, ficava horas olhando a plumagem do bicho, pensava que ele carecia de um nome, que precisava ser mais legítimo... Pronunciei Ananias, não porque esse fosse um nome significativo, nem sabia o que quer dizer o nome, mas porque ele tinha jeito de Ananias, repeti três vezes o nome, chamei o galo pelo nome, ele respondeu com um cacarejo de espanto, como quem aprovasse, e com os dias foi ficando mais sério, mais maduro com o nome.

Experimentei replicar suas frases, mas ele ficava indiferente, ou não me entendia ou não se interessava pelo diálogo. Rosilene leva uma galinha para ele, que logo começa a botar. Ele é e não é, está e não está no ninho. O ovo. O quê?

Com muita dificuldade, começamos a estabelecer um alguma coisa parecida com um diálogo, eu supunha que ele me ouvia e tentava estabelecer qualquer nexo entre o que falávamos, porque suas frases, como acho que já falei, quase sempre não se remetiam aos enunciados anteriores. Tudo se move no indeterminado, dizia, como se ilustrasse com essa frase seu modo de se expressar, sem mencionar Anaximandro ou qualquer outro. Eu dizia que ao fim tudo se debruça sobre o fogo, um fogo... Cogitávamos no nada, conjeturávamos para nada. Via as perguntas ou assertivas escaparem-se do corpo de Ananias, ele se desdobrava em frases a sondar o mundo, a não sondar nada, parece que por deleite apenas em dizer aquilo que lhe desse na ideia.

Ficava com ele já sem querer, por uma atração de que não me dava conta... Não esperava que Rosilene fizesse nada para ele, eu mesmo fazia tudo, observava o ninho, via se o ovo estava e não estava no ninho como na cabeça do físico, quer dizer, do galo, quer dizer, não sei... Rosilene dizia que ela também teve uma galinha doida, que chocava um ovo que não existia, deitada num pedaço de papelão. É, Rosilene... Você é muito inteligente... Sabe até que existe galinha doida, eu falava para mim mesmo.

Parece que ele era mais importante que o mundo, me ouvia, mesmo não respondendo a nada que eu dissesse, arregalava os olhos e cantava a dois passos de mim. Eu pedia a Rosilene que não contasse para ninguém, imaginando que ela já tivesse contado para todo mundo... Não tinha mais como duvidar, Ananias estranhamente era mais verdade que tudo na casa, na rua... e cada vez mais eu acreditava que ele conversava comigo, não pensava que minha irmã era doida por causa do galo, era normal galo falar...Mas de um momento para o outro, Ananias cala, não canta, anda pelo quintal como se não tivesse compromisso com nada do que houvesse dito. Tento provocá-lo, mas ele não reage, perdeu a graça. O que você fez com ele, Rosilene? Nada... Eu não fiz nada. Dois dias depois aparece morto... Pego seu corpo não crendo, ele ainda estava fresco, a carne macia. Foi Newcastle... Era dessa doença que morriam as galinhas que meu irmão criava, sem apresentar sintomas apenas caíam... Giro o corpo nas mãos, apalpo-o, não apresentava sinais, tinha sido mesmo Newcastle... Se eu não tivesse lhe dado um nome seria mais fácil... mas com nome as coisas, animais ficam mais vivos e o afeto fica maior. Repeti seu nome três vezes, seu corpo foi se transformando devagar numa massa azul, de uma textura aveludada, acrílica, de pelúcia... meus braços, minhas roupas, meu corpo, em instantes estavam azuis... Vi meus sentidos turvarem-se... Lembro-me de ter ido para o quarto... Da cama, via o corredor... Minha irmã injetara em Ananias alguma substância radioativa, talvez apenas a maldade... enfiara-o numa experiência de Dirac, numa lata de possibilidades, encostara-o na antimatéria, diluíra-o numa solução quântica, benzera-o com a teoria tudo... Rosilene vinha cambaleante azul fosforescente em minha direção, oferecia-me um copo com um líquido grosso azul cambiante, o quarto nave toda azul, turquesa, macio, radiante, o chão movia-se para cima e para baixo, como a desenhar curvas do espaço-tempo... Na parede dançava luminosa a fórmula de Dirac.


Vicente de Paulo Siqueira, radicado em Planaltina-DF, nasceu em Caratinga-MG. É formado em Letras pela UEG e trabalha, atualmente, com a Companhia Reverso de Teatro. Lançou em 1995 o livro de poesia O TAO DA COISA (Casa da Anta); em 2004, lançou o livro de contos LÂMINA (LGE); em 2009, ABECEDÁRIO (LGE), também de poesia; tem inéditos CORPOLIVRO (poesia) e O CÃO SEM NOME (contos).