Shakespeare, um dos fundadores da modernidade, escreveu em Hamlet: “O gato há de miar, e o cão terá o seu dia”. A peça, além de tratar do indivíduo, pode ser lida da perspectiva trágica da vingança – ou da dificuldade para assumi-la. O mesmo tema é tratado em Trinta Gatos e um cão envenenado, de Geraldo Lima: “[...] varrer essa casa o dia todo cansa. A sujeira não acaba nunca. Viver cansa. Às vezes a gente precisa descansar. Mas descansar mesmo só morrendo.” (LIMA, 2011, p.66). A diferença é que agora temos uma personagem feminina, Zeza, que não titubeia diante da necessidade de agir: “Ninguém precisa mais de remédio. Isso não tem mais remédio, mãe.” (LIMA, 2011, p.66).
A segunda peça de Geraldo Lima impressiona. O texto, sua segunda obra dramatúrgica, aponta para um caminho profícuo neste campo literário. A peça Trinta gatos e um cão envenenado é, a um só tempo, claustrofóbica e desnorteante. Claustrofóbica por nos apresentar um ambiente cujo conceito de família é mais do que opressor, como se o mundo, a família, o ego fossem variantes de uma mesma prisão. Desnorteante, por não apresentar um caminho seguro para os personagens. Recordando Sartre, nesta história o inferno são sempre os outros. Ou, então, aquilo que encontramos do outro em nós.
Este dramaturgo goiano-brasiliense nasceu em 1959 na cidade de Planaltina. Sua inquietação pode ser percebida nas variantes literárias que frequenta: publicou os livros de contos A noite dos vagalumes e Baque, e um de micronarrativas – Tesselário; publicou ainda o romance Um e o livro infantil Nuvem muda a todo instante. Sua estreia no teatro se deu com Error. Neste vasto universo, Trinta Gatos e um cão envenenado chama a atenção pela sua força dramática e o fluxo dialógico que decorre de suas vozes.
Os diálogos, de início, parecem recair em temáticas realistas: família, desajustamento social, sexo, degradação de valores etc. Mas, à medida que nos confrontamos com o modus operandi de cada personagem, percebemos um dilaceramento existencial de cada um. O enredo conjuga quatro parentes e um cão envenenado. O pai perde-se na bebida e no apagamento do passado. A mãe tenta salvar-se na religião. O filho consegue livrar-se desse jogo e resolve constituir a própria família. Zeza, porém, é a filha decidida a vingar-se. Vive em função do passado, da própria dor e do silêncio de todos diante de ato eminentemente atroz: “Esse silêncio é de cumplicidade. Ainda que houvesse sombras, medo, ainda assim teria sido possível gritar, denunciar, fazer valer a justiça dos homens.” (LIMA, 2011, p. 58).
Outra característica que merece reflexão é o fato de os personagens não passarem por aqueles processos de amadurecimento em cena e que, ao se rebelarem, acabam por ganhar novos perfis – como acontece no teatro de Hilda Hilst. No teatro de Geraldo Lima os personagens são marcadamente trágicos. Mesmo vivendo um drama atemporal, drama freudiano chamado família, todos os personagens estão revestidos de máscaras. Não por acaso a peça tem um Coro de Máscaras que leva para um deslocamento os envolvidos na trama, os leitores e/ou espectadores. As vozes em uníssono geram um eterno retorno do enclausurado, ou melhor, um retorno ao álbum de família empoeirado: “A vida comigo não tem volta, não. Ela vai sempre...” (LIMA, 2011, p.37).
A loucura e a morte, facilmente encontradas nas páginas policiais do jornal, no teatro, revelam que cada indivíduo guarda consigo um certo veneno. Quando nos confrontamos com o final da peça, tem-se a impressão de que fomos, de certo modo, envenenados pelos personagens. Seres que expressam uma certa náusea existencialista e que mostram quão miserável pode ser a condição humana. Mas, como em toda tragédia, a catarse se dá justamente por sairmos do teatro/livro aliviados por não ter acontecido conosco. O resto é história.
Augusto Rodrigues é poeta e Professor Adjunto de Literatura Brasileira – UnB. Publicou os livros Niemar (poesia, Editora Vieira, 2008) e Onde as ruas não têm nome (poesia, Thesaurus Editora, 2009).
Francisco Alves é Mestrando em Literatura – UnB.