20 de jun. de 2011

Três breves contos de Munique Duarte

Por Munique Duarte

Diário de um navegante

Ele perdeu o rumo da vida com todo o mau humor que um homem pode ter em uma tarde nublada de sexta-feira. Tinha a certeza que aquele final de semana seria um dos melhores de sua vida. Tinha certeza que a cruz pesada que carregava nas costas seria carcomida em segundos por quatro centenas de cupins, e que tudo se renovaria como tempo limpo de arco-íris depois de tormenta furiosa.

Ao observar bem o horizonte repleto de gaivotas em alvoroço impertinente, percebeu que já não fazia mais parte daquele universo. Revoadas e alvoroços já não faziam mais parte de seu dicionário seco e mastigado de homem com rugas principiantes. O gosto salobro de últimas palavras ditas, malditas, não saía da superfície da língua. Estava cansado de corpo e alma. E dizem por aí que homens adoram enganar mulheres, mas e as mulheres? Elas não enganam? Elas não são mestres em colocar máscaras de sorrisos falsos e fingir prazeres que não existem? Mulheres são ardilosas e isso não parava de reverberar em sua cabeça de homem vivido.

Não se importava nem um pouco sobre como seria seu futuro, sobre o que faria sem ela, a mascarada dona de seu coração. Ele não permitiu que ela fosse sua dona exclusiva, mas foi seu próprio coração que permitiu que ela entrasse e causasse estragos, turbilhões, tempestades de areia. Ah, tempestades de areia... Ela com aqueles olhos infinitos de deserto, a boca com azedume de tâmara, o perfume inconfundível de chuva que cai mansa e faz as pálpebras fecharem. Olhos babilônicos de princesa.

O vento ficava cada vez mais forte e frio e ele desejava com ardor a presença dela, somente mais uma madrugada. Ele não queria prometer mudanças e nem ser um homem diferente. Ele também a queria como ela nasceu, selvagem, louca, abundante, inconsequente, mascarada. Ele a desejava com a força da tempestade de areia e a mansidão da chuva que acumula água rasa em poça eterna. Mirando o espaço a sua volta, seu corpo queimava e era hora de regressar. Entrar em casa e fazer qualquer coisa que acelerasse o tempo e acalmasse a sua virilidade. E foi o que fez.

Ao deitar-se não pensou nela como sempre. Pensou nele mesmo e na possibilidade de mudar a agulha da bússola de direção. Cansado de ser marionete alheia. Cansado de afogar mágoas e desejos em meio a solidões noturnas. Os olhos pesaram depois da meia-noite. Mal aterrissou em seus primeiros sonhos e escutou de longe alguém bater na porta. Cambaleante e descompromissado, abriu a porta. Era ela, a mascarada princesa do deserto. De corpo quente e viril de outrora, agora ele sentia o corpo gelado com coração trepidando. Ela se aproximou rapidamente e encostou os lábios dela nos seus sem pedir desculpas, sem pedir licença. O que restava agora era corresponder, rasgar o corpo em desejo a bordo de tapetes voadores. Deixar as máscaras no lugar de sempre e deixar a agulha da bússola apontada na mesma direção de meses atrás. O salobro da boca ganhou gosto de tamareira. A chuva caiu mansa misturada em tempestade de areia. Ela pode ser selvagem esta noite o quanto quiser. Ele pode se sentir como gaivota em revoada e alvoroço até onde merecer. Acordarão amanhã bem tarde, pensarão nos rumos da vida e, bem mascarados, farão planos secretos. Daqui em diante, a bússola ficará inerte.

Pacto com as paredes

Paredes brancas testemunhas de atos irreais. Talvez esta noite ele durma mais tranquilo, sem ter cães devoradores ao lado de sua alma. Não é fácil ter gostos tão sutis em meio à parafernália da metrópole exigente que quer sangue quente e fresco a cada madrugada. Enxergou sóis triangulares e ouviu urros uterinos de jacarés-fêmea que não largaram seu corpo por horas a fio.

Sente coçar as marcas nos pulsos, abertas há quinze dias. Atos infernais depois de quatro doses de whisky com ácido sulfúrico. Ninguém o avisou que a estrada seria cor de petróleo e que os aromas doces de papoulas envenenadas não eram para ele. Convidado insólito de festa acabada, caótica, manchada de suores amargos e viscosos.

Já é dezembro em seu calendário cambaleante. Já é fim de ano e de vida. Quando passar da meia-noite, brindes de novos ares, promessas de novos amores, tagarelar de novas esperanças, girar de tambores para ver quem tira a munição do azar. Ele sempre faz promessas, de joelhos, em frente às suas imagens sagradas, depois se chicoteia quinhentas vezes para certificar sua devoção. As jacarés-fêmea sempre o rondam ao redor de sua cama, com hálito de caça, de carne crua. O sangue seco dos pulsos as atraem.

Tarde da noite, recolhe-se sempre em seus pensamentos. Não consegue mais dialogar com ninguém. Seu amor se foi há três décadas e ele nem percebeu. Ouve discos arranhados e prega nas paredes brancas retratos de pessoas mortas. Há grades nas janelas de seu apartamento e os produtos de limpeza foram retirados às pressas. Engoliu os perfumes de todos os vidros e pensou atear fogo no tapete da sala, evocando as imagens sagradas que ele precisa tanto hoje. Está trêmulo e não consegue suspender o galão de gasolina. Quer morrer de outras formas, mas não sufocado. Quer brindar ainda depois da meia-noite com urina das jacarés-fêmas. Talvez hoje enfie seu falo morto em cada uma delas. Refará depois as marcas nos pulsos. Com as paredes ele já fez um pacto. Elas devem ficar caladas, e ele fará preces para a lua nascer às nove, esverdeada, obervada por detrás das grades da janela do sétimo andar. Jacarés-fêmea terminarão o serviço.

Cedo, lavará o sangue das paredes brancas. Tarde, ficará de joelhos sobre sementes de maçãs cortadas. Noite, ele dormirá de olho nas corujas que sujam seu tapete.

Jacarés-fêmea e jacarés-macho entrarão no cio às nove com lua esverdeada.

A matusquela da Tianoca

Na ponta dos pés, a pequena Tianoca se esticava inteira para ver pela janela o que se passava na casa da Dona Bentinha. Não que fosse curiosa, pobre da Tianoca, é que a vizinhança dava motivo. Pela janela lateral da velha casa desbotada, não conseguia ver nada. A janela até que não era alta, mas Tianoca tinha apenas nove anos. Depois de ouvir muitos gritos vindo da casa de Dona Bentinha, ela foi testemunha do tumulto formado na porta da casa da velha que só andava de saia comprida e lenço na cabeça. Mas minutos depois, o tumulto se transformou em meia dúzia de gente pingada. Tianoca, do alto de sua tenra infância, não se arriscou a perguntar a algum adulto o que tinha acontecido. A resposta era sempre a mesma, que criança não deve meter o bedelho em "certos assuntos".

Tianoca, insistente matusquela, não arredou o pé da casa da Dona Bentinha. Descobrir o acontecido era o objetivo do dia daquela tarde de domingo sem graça em povoado de quinhentos habitantes. Por mais que se contorcesse na janela, Tianoca não conseguiria nem ultrapassar a medida de meio olho. A única coisa que a magrela conseguia ver era uma fumaça escura subindo pelo meio do quarto da casa e indo se desfazer no teto, como bolha de sabão. Será que a Nhá Frozina havia entrado na casa de Dona Bentinha? Nhá Frozina era mestre na arte da benzedura, e com aquele auê todo de gritos e mais gritos deve ter ido voando acudir a Dona Bentinha, que já era velhinha pra lá dos oitenta. E a fumaça do cachimbo não parava de subir.

Por falar em subir, Tianoca tinha problemas em ganhar mais altura para suas verificações dominicais. Pensou em correr para o quintal de casa buscar um caixote velho de maçã, mas logo pensou que, ao subir, o caixote iria se espatifar com ela e tudo. Já estava podre de tanto levar chuva em mês de março. E quanto mais pensava, mais perdia tempo a matusquela. Olhando para o lado, avistou o objeto de sua salvação. Uma lata vazia gigante de ervilha, meio enferrujada, mas que quebraria o galho oportunamente. Era só uma olhadinha rápida, ora. Mirou para os lados para conferir a falta de testemunhas e ao colocar o pé direito em cima da lata para alcançar a bendita janela, Tianoca ouviu o sonoro dizer de sua graça: Sebastiana Angélica! Era o grito de sua mãe, irritadíssima com a curiosidade da matusquela, aquela história do "o que é que os outros vão falar" e etc e tal... Agarrou a mão de Tianoca e a arrastou para casa. De queixo erguido ela pensava em seu futuro recente, xingamento de esquentar a orelha ou chinelada de esquentar o traseiro. Mas Tianoca ansiava ainda pe la terceira possibilidade, a de um longo castigo enquanto sua mãe sairia para conferir as novidades da vizinhança, porque curiosidade para Tianoca era feito hereditário, e sua mãe nem precisaria da lata gigante de ervilha.

Munique Duarte - Nascida e vivendo (sempre!) em Santos Dumont-MG. É jornalista responsável das publicações dos sindicatos dos carteiros e dos auxiliares de ensino privado de Juiz de Fora. Formada pela UFJF, musicista, trilingue, viajante cosmopolita, mineiríssima de tantos causos. À espera de escrever um livro e ter um filho. (Um dia desses, planta uma árvore!). Bloga em http://textosimperdoaveis.blogspot.com. Admiradora da vida e de Dalton Trevisan.