10 de mai. de 2011

Cortázar e a Obra Definitiva - final

Por Claudio Parreira

- ELES FORAM ALÉM, sim. Além de suas forças.
Borges sorriu, como há muito não fazia.
- Não vi as putas, mas sei que não são seres imaginários. E receio que elas também não tenham me visto.
- Não viram você, Borges. Jamais verão.
Dedé vinha descendo a escada. Apesar da maratona dos dias anteriores, exibia ainda um vigor admirável.
- Senhor Cortázar – disse ela. – Com quem está conversando? Nesta casa hoje só se ouvem roncos e peidos.
- Com um velho amigo – respondeu ele. – Mas ele já se foi.
- Bem-vindo a Casa Rosada. Gostou do nome?
Cortázar riu novamente. Não imaginaria nome mais adequado para um puteiro.
- Perfeito. Mas as minhas considerações políticas não cabem aqui. Vim por outros motivos.
- Eu sei – continuou Dedé. – Mas os escritores estão fora de combate. Acho que só estarão em condições amanhã.
- Se sobreviverem a esta noite – alfinetou Cortázar.
Dedé simulou um sorriso, aproximou-se de Cortázar e lhe deu um beijo nos lábios. O escritor então foi para a rua com passos largos, acompanhado ainda pela voz de Maysa.

Cortázar não sabia que tempo era aquele em Lugar Nenhum: parecia noite, parecia dia, não era nenhum deles. Impossível aplicar à cidade a régua rasa dos calendários e relógios. Era apenas, e bastava. O escritor sabia disso, de certa forma. Nenhuma surpresa, portanto. Apenas a sensação incômoda do dever a cumprir. Pela primeira vez alguém realmente se importava com a feitura d’A Obra Definitiva.
Sem ter o que fazer por ora, foi andando pelas ruas poeirentas de Lugar Nenhum. O Pombal não o interessava; a estação de trem serviria apenas para outros fins. E nada mais havia além da Casa Rosada, só quilômetros de vazio e ansiedade, um horizonte repleto de interrogações.
- Quer uma cerveja? – perguntou Miguel, que sempre surgia do nada.
Cortázar aceitou, recebeu também um Montecristo e ficaram os dois, fumando e bebendo, os pensamentos ancorados na imprecisa paisagem da alma.
Um uivo, o mesmo uivo, se fez ouvir novamente. Nenhum dos dois pareceu se incomodar. Cortázar apenas levantou uma sobrancelha.
- Deve ser algum dos homens – falou Miguel com gravidade.
- Então é o que nos resta – falou Cortázar.
- O quê?
- Esperar, apenas isso.

Dois ou três dias depois, difícil definir, Cortázar se viu finalmente no salão principal da Casa Rosada, diante dos sábios que escreveriam A Obra Definitiva. Não foi saudado com a reverência corrosiva destinada às celebridades, mas foi aceito como fundamental para o andamento do que se pretendia fazer.
- Senhor Cortázar – falou o Braga, Narinha colada à sua pele. – O problema é que não conseguimos iniciar o trabalho. Temos aqui filósofos, poetas, ficcionistas como o senhor, estudiosos das mais variadas disciplinas do conhecimento – mas não conseguimos escrever uma linha sequer. Parece até que algo maléfico nos impede de trabalhar.
- Da maneira como você fala, Braga, parece que eu tenho o dom de fazer o que vocês não conseguiram até agora, e não é nada disso. Não estou aqui para tomar o trabalho de vocês em minhas mãos. Vim somar, apenas. Juntar o meu esforço ao esforço de vocês.
- Esse é o problema, senhor Cortázar: o único esforço que temos feito nos últimos dias é de outra natureza.
- E muito bem feito, diga-se de passagem – falou Dedé no alto da escada.
- Bem – continuou Cortázar -, estou aqui para ajudá-los. Se é isso que estão fazendo, estou pronto também!
Os olhares todos se dirigiram para Dedé, que do alto da escada aplaudia e sorria animada.
- Madame Dedé – falou o Braga, outra vez grudado ao corpo de Narinha –, feche as portas da rua e abra as portas da adega que os trabalhos de hoje não têm hora para acabar!
Do lado de fora, sozinho, Miguel sentiu-se prestes a testemunhar o Apocalipse.

Sessenta dias e sessenta noites foi o tempo que durou a festa na Casa Rosada. Nunca Lugar Nenhum fora palco de tamanha orgia. Às vezes, exaustos de tantos beijos e abraços, tantos gozos e chupadas, alguns homens se permitiam ir à janela para tomar um pouco de ar. Logo retornavam, porém, porque a urgência do amor os esperava de pernas abertas.
Narinha, que pela sua juventude e beleza fora eleita a preferida da casa, tão logo dispensava um namorado já se encarregava de outro, de outros, três quatro ao mesmo tempo. Dessa maneira, portanto, não houve homem na Casa Rosada que não tivesse conhecido de Narinha a vertigem dos beijos ou os encantos da bunda. Dedé, cuja experiência supria em muito as imperfeições da exuberância, também ela se ocupava de vários ao mesmo tempo, e na medida em que o trabalho ia sendo cumprido, amontoava os homens – ou aquilo que deles restava - na porta sempre aberta do seu quarto.
Diversas foram as vezes em que Cortázar se encontrou num estado que jamais soube definir, entre o onírico prazeroso e a terrível lucidez. Um estado de conto, diria mais tarde, onde os limites se desdobravam em outros limites e outros mais sem fim. Um dia, acordando no colo de Narinha, sem saber se pela primeira ou pela décima vez, perguntou onde estava. Lugar Nenhum, respondeu a menina, e Cortázar se viu despencando em um abismo de estrelas fulgurantes, voltas e mais voltas sobre o negro absoluto, seu corpo rumando para um estado que sua cabeça jamais conseguiria alcançar.
- Estou acordado ou dormindo? – perguntou.
Não houve resposta. Apenas o rumor de mil vozes, a princípio distantes mas depois cada vez mais próximas, vozes que ele reconhecia de alguma maneira, as vozes dos companheiros de viagem. Ao abrir os olhos então Cortázar se percebeu não numa cama ou nos braços de Narinha, mas inteiramente nu no salão inundado de luz branca e vigorosa, luz que não via igual desde que as portas fecharam a Casa Rosada num mundo inteiramente composto de suspiros e desmaios.

Muitas foram as tentativas de escrever A Obra Definitiva depois desse largo intervalo amoroso - mas todas elas resultaram em vão. Mês após mês, e os sábios, já deprimidos, passaram a ocupar os seus dias com lamentos e maldições, impropérios e lágrimas das mais variadas intensidades. Trocaram, muitos, a poesia pela cachaça; outros, fizeram de confidentes as garrafas de uísque. Cortázar oscilava entre uns e outros, preocupado. Não entendia ainda o seu papel, a sua função. Sabia apenas, de maneira vaga, que o trabalho ainda não tinha acabado.
O Braga, que se encontrava em estado semelhante, quando o álcool permitia, falava:
- Veja só, senhor Cortázar. Um bando de inúteis, é nisso que nos transformamos. Os cérebros mais notáveis gerados no planeta reduzidos a isso: pó e fracasso. A Obra Definitiva jamais será escrita, não por esse bando de idiotas.
- Calaboca Braga – falou Dedé no alto da escada. – Reúna os homens que tenho uma comunicação importante a fazer.
Cortázar e o Braga trocaram um rápido olhar e foram trazer os homens, pelo menos aqueles ainda capazes de andar e compreender a fala humana.
Sob a escada, no salão que mais parecia um campo de batalha em ruínas, os homens ouviram de Dedé:
- Senhores, quero dizer a todos vocês que Narinha está grávida!
O silêncio se seguiu por vários minutos. Alguns homens, temendo a responsabilidade de uma paternidade repentina, se retiraram do salão. Outros, ainda sem entender do que se tratava, olhavam fixamente para Dedé como se vissem nela um anjo ou demônio encarregado de transmitir uma mensagem cujo sentido não alcançavam.
O Braga, saindo do transe, falou:
- Não entenderam ainda, seus burros? Nós vamos ser pais!!!
Cortázar sentiu que o peso que trazia nas costas subitamente se converteu em alegria. A mesma alegria sutil e silenciosa do conto realizado, do trabalho cumprido.
- Nós, pais? Quer dizer então...
- Consegue apontar apenas um homem? - continuou o Braga. - Narinha dormiu com todos nós...
Abraços e beijos, mais uma vez, foram trocados no salão, e os homens, antes deprimidos e à morte, voltaram a brindar e dançar em nome da alegria, que há muito estivera ausente.
No alto da escada, mesmo considerando-os um bando de sábios idiotas, Dedé se emocionou pela primeira vez desde a juventude.

A Obra Definitiva já era um projeto relegado ao esquecimento quando Dedé se materializou entre os homens com um pequeno embrulho nos braços.
- Aqui, aqui! - disse ela.
Emudecidos, os homens fecharam um círculo estreito em volta de Dedé.
- Sai, sai, se afastem. Assim vocês vão sufocar a criança!
Cortázar e o Braga afastaram os mais afoitos, com delicadeza e chutes nas canelas. Dedé, afastando a manta que cobria o bebê, falou emocionada:
- Senhores, chega de perder o sono e o senso com essa história de Obra Definitiva. O trabalho de vocês chegou ao fim.
O Braga atravessou:
- Como chegou ao fim? Nós não escrevemos nem uma linha!
Cortázar sorriu. Dedé também.
- A verdadeira Obra Definitiva está aqui em meus braços - falou ela. - Não queriam condensar num só trabalho todo o conhecimento, todo o gênio humano? Não buscavam a forma perfeita? Se queriam o livro dos livros, a escrita mais sublime, ela está aqui, enfim: escrita em forma de gente, filha de Narinha e de todos vocês!

Quando o trem partiu levando o último sábio, Lugar Nenhum já era uma cidade inexistente. No lugar onde estivera a Casa Rosada, apenas uma porta sustentada pelo céu poeirento.
Cortázar e Miguel fumando e tomando cerveja, geladíssima.
- Palhaçada - falou Miguel.
- O quê?
- No final das contas, essa Obra Definitiva não passa de uma filha da puta!
Cortázar riu.
- Depende do ponto de vista.
- Ponto de vista o caralho! É isso mesmo! E os cretinos nem me pagaram...
Enquanto Miguel excomungava os sábios, as putas e tudo o mais, Cortázar atravessou a porta. Uma ventania então varreu o vazio.