A ponte
Super-herói brasileiro que se preze tem momentos de lazer na beira da praia que é para receber a benção de Iemanjá. Entre uma porçãozinha de camarão e outra cerveja, no entanto, houve chamado urgente que acabou com meu intenso ócio de grande homem:
- Alô?
- Alô, Juca. Há caso urgente, e vantajoso, lá para os lados do sertão...
- Mas, dona Gorete!
Creio que ainda não tenha dito nada nesta série sobre a dona Gorete; não é, leitor? Então digo agorinha mesmo. Com as finanças do país acolhendo melhor ao povo místico, achei por bem contribuir com o instituto. Contratei uma secretária particular.
De fato, a senhorita Gorete, nascida Marieta Pimenta e conhecida como madame Mariana Voucher, foi contratada junto ao Night Club da esquina dos cabarés à minha sala de justiça, no centro da cidade. Para lhe dar ares de secretária profissional, calhou fichá-la como dona Gorete. A única exigência na entrevista para a vaga seriam os seios... fartos! E isto madame Mariana Voucher, isto é, dona Gorete tem de sobra – uma beleza de secretária!
Sim! Deixemos desta conversa para não vexar a querida leitora. Perdoe-me, dona minha, sou salva-guarda de bons modos.
Como ia dizendo no começo, descansava as nádegas na areia salgada da praia quando me veio a doce notícia. Fui às pressas, na melhor classe econômica, socorrer alguma vida pelo sertão longínquo.
Imagina o leitor de pouca fé que o caso remete a alguma bolsa do governo ou cartão de crédito corporativo; não é mesmo? Nada disto, caro amigo. O ofício era importante, inaugurar uma ponte de algum lugar a lugar nenhum. Grande arquitetura! Exato. Uma ponte onde não corre nenhum rio e nem chuva por lá quer comerciar nem barganhar qualquer acontecimento. A petição foi assinada por prefeito de cidadezinha com poeira seca do século XIX. Nisto pode-se até dizer que seja certa atividade governamental. Pois sim. Para que ponte em lugar sem margem, sem curso d’água, sem peixe, sem ararinha-azul, quase sem vida? Nem ousei publicar a reflexão na praça do lugarejo. Meu ofício foi tão-somente convencer o povo sertanejo da necessidade da obra de engenharia engenhosa:
- Senhores – levantei a palavra –; é imprescindível a construção da ponte!
- Por quê? Ora, seu Juca!
- Ora, caro jeca...
- Ora nada, meu nome é Severino porque não tenho outro nesta sesmaria; e para que ponte em terra seca que água não corre nem dá as caras, meu senhor? Quer que haja pesca em lugar sem peixe, meu senhor?
- É necessário, é necessário... – disse isto e aquilo, e nada adiantava. Aleguei inclusive futuro interesse do governo federal. Nada feito.
- Meus senhores – tentei persuadi-los com prosa oficial –; quando a dona do Palácio souber que já há ponte no sertão se convencerá da necessidade humanitária e política de se trazer a água para correr por debaixo dela... Ora bolas!
- Nada disto, seu Juca! Teve até um Imperador que andou por esta banda carente prometendo poços artesianos cheios d’água e rios caudalosos correndo na porteira de nossas chácaras. O coroa foi expulso do trono deixando Conselheiro sagrado que virou lenda cabocla, tudo mudou, consta até que já tenham morridos os seus filhos príncipes e suas filhas princesas, e o chapéu republicano cobriu as ideias do Conselheiro que se afogou sem ter conhecido a água. E nada, nada de água chegar por aqui. Vivemos no nada, nadando e nadando sem se molhar... Assim como se esquece com simplicidade os homens antigos, também se esquece facilmente desta coisa de governo; pois ou o governo não gosta de nós ou não gosta de água...
O caso já estava quase todo perdido com muito prejuízo para a minha firma de justiça, e também para a firma política do prefeito do sertão, quando me acudiu um espírito divino para que a magnífica obra fosse erguida às pressas no meio do nada.
- Inauguraremos a ponte com o nome de Ponte Padre Cícero. Pronto!
- Como? É. – disse um.
- E não é que a ideia é boa. – disse outro.
- Valei-me, meu padrinho Cícero! – disseram todos.
Episódio resolvido. Convencido o povo severino, consta que já até iniciaram as fundações da construção de doca e pontilhão. Grande ponte! Mas, ao regressar à cidade grande, despindo-me de minha capa de super-herói, não pude enxergar o meu reflexo diante do espelho. Fiquei sem rosto, não me via refletido em superfície alguma. Há pontes que a nossa alma não consegue atravessar de nenhum modo, nem por cursos d’água dominantes nem por atos heróicos.