26 de abr. de 2011

Ela morre no final

Por Rodrigo Novaes de Almeida
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Ela morre no final. Você está maluco? Como é que você começa a história contando o final? A pessoa ali do outro lado não quer saber o final da história logo na primeira linha. Que falta de consideração! Acabar assim com a diversão dos outros... Diversão? Então ler a nossa história é um mero passatempo? E por que não seria? Ou você tem a cara-de-pau de dizer para a pessoa ali do outro lado que ler a nossa história é um caminho de transcendência de algum tipo, uma espécie de busca por verdades ou revelações existenciais, ou blá blá blá, blá bargh, acho que vou vomitar... Vai nada. E não acho nada também. Vamos continuar a contar a história. Continuar? Você já estragou. Não estraguei não. A pessoa ali do outro lado não sabe como ela morreu, não sabe por que ela morreu, não sabe quando ela morreu, não sabe onde ela morreu... Só sabe que ela morreu. Então escreva uma nota jornalística, um obituário, sei lá, porque não é assim que se começa uma novela. Novela? Ah, você está mesmo de palhaçada. A gente nem ia escrever uma novela. No máximo um conto, uma crônica, ou seja lá que tipo híbrido se escreve hoje em dia. Você vai ou não continuar? Tudo bem, eu continuo. Certo. Ela era muito, mas muito gostosa. Que maravilha! E ainda reclama de mim. Esta é a sua descrição abre aspas literária fecha aspas para os atributos físicos da personagem? Sim. Penso que é melhor deixar para a pessoa ali do outro lado os detalhes, faz bem para exercitar a imaginação. Bem o escambau. Devemos descrever os pormenores, sempre. Basta dizer que ela é bem parecida com a Rosario Dawson. Ah não, não! Se é para fazer deste jeito, que ela seja parecida com a Eva Green. Eu prefiro a Rosario. E eu a Eva. Mas elas são bem diferentes, assim confunde a pessoa ali do outro lado. Pelo menos as duas são gostosas pra cacete, como você queria. É verdade. Vamos adiar então esses detalhes sobre os atributos físicos dela. E o que você sugere? Vamos contar como e quando ela morreu. Ela morreu no finalzinho da tarde, na Voluntários da Pátria, em Botafogo, no Rio de Janeiro, ao sair de uma igreja. Levou um tiro, uma bala perdida. A polícia e os traficantes brincavam de faroeste caboclo, como de costume. Até aí nada demais, bem comezinho. Aliás, você é um péssimo narrador, nem sabe contar uma história, êta resuminho chinfrim! E ainda se esqueceu de dizer que ela estava vestida de noiva, que saía da igreja chorando tanto que mal podia enxergar um palmo diante do nariz, que talvez até morresse atropelada se não tivesse levado aquele tiro. Atropelada? Por quem? Pelo quê? Um trânsito desgraçado, tudo parado, os motoristas deitados debaixo dos carros para não serem alvejados no meio daquele tiroteio todo. Tem razão. Pobre coitada. Largada no altar pelo noivo e morta três minutos depois. Hum... Talvez a pessoa ali do outro lado não acredite na gente. Por quê? Porque só agora me dei conta de que já dissemos que ela era gostosa, muito gostosa. Quem vai acreditar que o noivo a largou? Ué, mas ser gostosa é o único motivo para estar com uma mulher? E não é? Claro que não! Mas é um bom motivo, um motivo bem forte, diga-se de passagem. Eu sabia que esse negócio de dois narradores para contar uma única história não daria certo. Assim a gente não vai terminar nunca. E eu que queria contar sobre toda a sua vida, desde a infância até o último suspiro no asfalto naquele finzinho de tarde. Último suspiro? Nem deu tempo para um último suspiro. O tiro foi na cabeça. Está vendo? Não dá. Que autor idiota tem uma idéia idiota de ter dois narradores numa mesma história, sendo um deles também idiota... Você está insinuando que eu sou idiota? Bem, não estou falando de mim. Tem mais alguém aqui? Tem, a pessoa ali do outro lado, e que já deve estar com ódio da gente. Pelo menos somos narradores sem nome, vai sobrar xingamento para o autor. Ele já está acostumado. Vive naquele mundinho de fantasia dele. Que mandem ele... Você sabe. É, sei. E a história? O que a gente faz com ela? Continuamos? Não sei, perdi o fio da narrativa. Que fio? A gente destruiu qualquer possibilidade narrativa aqui. Sim, destruímos a narrativa, para falar a verdade. A pessoa ali do outro lado talvez queira saber por que o noivo largou a gostosa no altar. Pelo menos podemos dizer por que, não? Talvez. Mas tenho um plano. Qual? Não vamos dizer. Não? Não. Por quê? É simples. Destruímos a narrativa, certo? Certo. Não temos nome, certo? Certo. Então. Não satisfazendo a curiosidade da pessoa ali do outro lado, desviaremos a atenção para o autor. Ele será o culpado pelo fracasso da narrativa. Belo plano. Bem perverso. É, eu sei. Mas temos um outro problema. Qual? Como terminaremos isto aqui? Com um ponto final. Ou reticências. Reticências não, o autor poderia se vingar fazendo com que a gente voltasse num outro texto, uma continuação, e já vimos que a gente não consegue trabalhar em parceria. Mas então é só escrever ponto final e pronto? E pronto não, só ponto final. Não estou gostando... O que você sugere? Vamos deixar com o autor. Como? A gente espera. Uma hora ele terá que parar, terá que sair, ir ao banheiro, atender um telefonema, comer, dormir, o que for. Ele é resistente, pode demorar... É verdade, mas a gente pode enrolar. Como? Hum... Deixa eu ver... Já sei. Fala! A gente pode, pelo menos, tentar decidir se ela se parecia com a Rosario ou com a Eva. Já não importa mais. Ei, escuta! Que foi? Parece que o telefone está tocando. Bendito seja o Nosso Senhor! Que isso? Não vai me dizer que é religioso? Era só o que me faltava, um narrador religioso... Não sou não. Sou agnóstico. Estou pouco me lixando. Mas nessas horas a gente apela. Ele não foi atender. Mas vai. Como você sabe? Eu sei porque vou lembrá-lo de que pode ser aquela mulher que ele está querendo, você sabe... Ah, sim. Claro. Gostosa pra cacete. Bem gostosa. Ela me lembra aquela atriz... Rosario? Não, seu besta! Nem Eva. Aquela. Esqueci o nome. Acho que se chama Scarlett. Sim, ela mesma. Scarlett Johansson. Podíamos ter escolhido el

Do livro Rapsódias – Primeiras histórias breves (Ed. Multifoco, 2009)