27 de abr. de 2011

Baque


Por Geraldo Lima

“Como nessa gente sadia, forte, alegre, tudo  está equilibrado, como em suas almas e cérebros tudo está aplainado e concluído.”
    (Tchekhov – Uma crise)


 Uma enfermidade de gente deitada ali, onde, há pouco, o sol se esparramava todo, ilha de luz convidando ao exílio, ao evadir-se do mundo. Agora a penumbra serve de esconderijo, e o corpo  mescla-se ao turvo, deixando quase de existir. Não há mesmo o aonde ir. Nem mesmo o pensamento escapa da jaula do crânio. Criar musgo, fundir-se ao piso,  deixar que o ser míngue, — respiração quase nenhuma, dando conta, no entanto, ainda da presença de uma alma no corpo.

O baque seco duma bola contra o muro arranca-a desse estado de falência múltipla.    

Outra vez a vontade de fumar, irredutível. Por mais que  resista, dizendo a si mesma que não moverá um músculo sequer para atender aos apelos do cérebro, acabará flagrando-se com  a carteira de cigarros na mão, cheia de culpa, salivando, trêmula, e, nesse ínfimo intervalo de tempo, entre o mover da mão e a espera aflita dos neurônios, ensaiará ainda uma resistência, tépida, mais rendição que luta.

Por que promete a si mesma que lutará contra tudo e todos se, no fundo, sabe que lhe faltará a energia e a obstinação necessárias? Se vai recuar diante dos primeiros sinais de realidade brutal e inane, por que então se colocar em guarda contra moinhos de vento? Mário sempre lhe cobrava uma atitude mais firme, uma tomada de decisão que não sucumbisse aos primeiros apelos da desrazão. Durante anos e anos suportou a corrosão do seu discurso, a impiedade dos seus gestos pulverizando as manhãs e os anoiteceres.

É mesmo a figura inteiriça de Mário que brota do nada e põe-se diante dela derramando palavras por todos os orifícios. Quer subjugá-la, deixá-la paranoica, convencida de ser realmente um ser fraco e inviável. Num repetir incessante, esvazia-a de si mesma. Quer que ela se purgue por sua entrega aos afagos da morte, por seus passeios para além dos escombros da realidade. Difama-a perante o mundo inteiro. O grande canalha, tão resoluto, sem lacunas, sem brechas por onde a dúvida e o desespero possam penetrar. Pudesse, expunha num outdoor  minúcias da sua vida, dando conta das inúmeras vezes em que ela caiu sob o peso da cruz que carrega, segundo ele, sem motivo algum.  Caiu e teve de se levantar sozinha, sempre, sempre, porque esperar por um Simão aqui, nessa via-crúcis cotidiana, nesse cilício, seria perda de tempo, não é, Mário? Não é, seu grande crápula?! Sabe que é inútil se indignar assim: ele já se encontra a léguas de distância, surdo como sempre a todos os seus gritos.

A bola bate de novo no muro, estrondosa. É assim quase todos os dias, mal escurece. A meninada parece não ter outra diversão senão essa. O diabo é que vez ou outra a bola acha de cair no seu quintal. Então já viu: se ela não apanha a infeliz e a joga de volta para os meninos, logo um deles se atreve a saltar o muro para apanhá-la. Tem xingado, esbravejado, feito papel de louca, mas parece que nada disso tem adiantado, já que continuam invadindo o seu espaço e troçando da sua cara.  Mas agora está disposta a enfrentar tudo isso. Está mesmo disposta a dar um fim a tudo, tanto à voz  de Mário, — voz de lanho que lhe flagela os ouvidos — quanto a esse tormento de menino gritando e saltando o muro.

Ah, que esforço tem feito para reter na mente os derradeiros fios de razão. Entre uma pane e outra, põe-se num labor intenso, dando nova feição à casa, espanando os móveis, trocando cortinas, afugentando insetos.  Súbito, desperta-se para o óbvio: precisa varrer a imagem de Mário da sua mente; depois de tantos anos, ele ainda está aí dizendo o que ela deve ou não fazer. É uma questão de saúde!  Há um desejo profundo de recuperar a ordem e a clareza. Nesses momentos, sentindo-se dona dos próprios atos, planeja abandonar o cigarro, mentaliza mesmo todo o processo, e chega a jogar fora o maço que acaba de comprar. Quer se livrar de tudo o que a oprime, principalmente da voz de Mário. Espera, ao final de tudo, ter enterrado para sempre essa voz vazia e seca.

Saudade mesmo é da gata que sumiu há mais de um mês. A gata que miava do lado de fora quando retornava dos longos passeios pelos quintais da vizinhança. Espera ainda que ela retorne e arranhe, aflita, o verniz da porta. É tão fraca, tão pusilânime, que vai deixar que ela entre como se nada tivesse acontecido.

Acaba de abandonar a área de quase-trevas e busca desesperada pela carteira de cigarros. Encontra-a metida no vão da estante, num lugar onde ela costuma esconder todas as outras. Sabe que, no fundo, tudo não passa de um jogo. E tem blefado o tempo todo, jogando com os limites da lucidez e da demência. Porém já não tem tanta certeza de quem está decidindo as regras desse jogo. Pode muito bem ser ela ou outra que a corrompeu nos mínimos detalhes, fazendo com que se mova fragmentada e sem memória. Quando foi mesmo que escondeu essa carteira? Tem quase certeza de que foi há pouco tempo, quase, quase, mas  pode ser também que já estivesse aí há dias, ou meses! E deve haver outras tantas escondidas por aí — centenas! — entre vasilhas, roupas, móveis e enciclopédias.

O cinzeiro transborda, denunciando as inúmeras vezes em que ela recuou, quebrando a promessa de abandonar o vício. Tudo, tudo transborda. A voz de Mário também tem vindo com mais frequência à sua mente, num martelar corrosivo, purulento. Parece também que hoje os meninos estão gritando mais, numa zoeira infernal.  Mas está preparada para o caso de a bola cair dentro do seu quintal. Está  preparada para tudo, para a vida e para a morte. Para a enchente e para a manhã de sol espocando na  janela.  

Ouve súbito baque de pés aterrissando no chão do quintal. 

Já esperava por isso. No vão da mente, turva e desassossegada, tudo está planejado. Nunca, nunca agiu com tanta lucidez assim. Voz alguma poderia fazê-la recuar agora, e pela primeira vez irá ao cerne da questão. Vai insurgir-se contra esses mandos que, mesmo depois de anos, ainda teimam em reverberar pela casa.

Contaminada por essa certeza, vai à cozinha e apanha a faca.

Ao abrir a porta, surpreende o menino tentando escalar de volta o muro, tentando retornar à vida, à claridade da rua, ao sol da infância.  Mais alguns passos e poderá alcançá-lo em pleno desespero de pássaro tentando atravessar o vidro da janela.                              
 
Do livro de contos Baque, LGE Editora/FAC, 2004.